Porto e cidade formam um sistema cujas interações e complementaridades variam sob a influência da evolução da atividade portuária e das modalidades do desenvolvimento urbano. Apesar da trajetória das cidades portuárias ser diferenciada, Hoyle, Bird ou Chaline destacam um processo histórico de distanciamento funcional e espacial entre os dois espaços. Nos países periféricos a evolução da relação cidade/porto inscreve-se numa dinâmica geohistórica específica. No Brasil as instalações portuárias foram usadas pela coroa portuguesa para conquistar, controlar e defender o território ultramarino além de funcionar como portas de entrada dos colonizadores, dos escravos e de manufaturados e como pontos de saída das riquezas do país (Darcy Ribeiro). Ou seja, o porto simboliza uma inserção dependente na divisão internacional do trabalho e num sistema de dominação colonial que alimenta até hoje uma relação complexa da sociedade com o espaço portuário. Nos séculos XIX e XX, a expansão e reestruturação da atividade portuária transformam a interface porto/cidade. A intensificação dos fluxos comerciais leva a um aumento do tamanho e a uma especialização dos navios. Os portos do Rio de Janeiro, São Paulo, Manaus e Belém são dotados de cais lineares, de equipamentos de manuseio das cargas, de armazéns especializados, de acessos ferroviários e de muros de separação que geram descontinuidades físicas entre a cidade e o porto, cujo desenvolvimento se torna autônomo em relação ao território urbano (Monié, Vasconcelos). O “sistema cidade-porto” (Chaline), marcado pela integração das funções marítimas, portuárias, comerciais e de serviços, entra em crise. A mudança de escala na produção, no transporte e no consumo estimula o gigantismo naval e a transferência das indústrias e das infraestruturas portuárias fora dos centros urbanos. As Zonas Industrial-Portuárias encontram na periferia das metrópoles reservas fundiárias para estabelecer estruturas produtivas de grande porte e calados que facilitam o acesso náutico aos portos. A partir da década de 1970, a reestruturação produtiva e a expansão do comércio internacional transformam as cidades portuárias. As redes produtivas conferem uma centralidade crescente aos sistemas logísticos. A fluidez da circulação dos contêineres obriga os portos a adotar novos padrões de gestão e localização: plataformas portuárias surgem fora dos grandes centros; portos secos interiorizam parte da atividade realizada no retroporto. Nos portos urbanos cujos cais não oferecem soluções às novas demandas dos operadores, o divórcio físico, gerencial, social e cultural da cidade e do espaço portuário provoca uma “remodelação da frente marítima” (Hoyle).
As áreas portuárias degradadas em busca de novos usos e funções
O abandono dos armazéns, a migração de estabelecimentos comerciais e industriais e a crise da função residencial degradam as áreas adjacentes ao porto. Os vazios urbanos acolhem vias de circulação e estacionamentos. Mas, cidades como Baltimore, Boston, New Orleans avistam a possibilidade de novos usos para os brownfields. As iniciativas pioneiras são voltadas para a criação de espaços verdes e recreativos que revalorizavam o elemento aquático no imaginário coletivo (Monié, Vasconcelos). Na década de 1970, a crise econômica estimula a definição de projetos ambiciosos: os waterfronts recebem comércios e equipamentos de lazer. A criação de amenidades na frente d’água deve atrair visitantes e investidores. Os bairros portuários são transformados em fronteiras de acumulação para o capital imobiliário dentro do modelo de cidade pós-industrial (Harvey). Os elevados níveis de lucratividade dos empreendimentos e a aceitação da sociedade facilitam a difusão dos projetos de waterfront dos Estados Unidos para o resto do mundo. Nos anos 1980/90, as intervenções urbanísticas participam do empresariamento da cidade que tem por instrumentos privilegiados o planejamento estratégico, o city marketing e as Parcerias Público Privado (Harvey). As cidades, administradas como empresas, lutam para atrair os fluxos de capital, investimentos produtivos, turistas, executivos e grandes eventos elevando os projetos num novo patamar.
Difusão Espacial dos projetos de reconversão dos waterfronts. (Elaboração: Vivian Silva, 2010)
O Projeto “Porto Maravilha”: instituições e ferramentas
A atual reestruturação da área portuária do Rio de Janeiro inscreve-se num momento especifico da evolução da relação porto/ cidade. Nos anos 1920/40, o colapso do café fluminense, o esgotamento do modelo agro exportador e a redistribuição geográfica da atividade industrial acarretam uma diminuição da atividade portuária e a crise das atividades comerciais e de negócio nos bairros portuários. Na década de 1960, o crescente volume dos navios e o redimensionamento das plantas industriais incentivam a construção do porto-indústria de Sepetiba. A zona portuária se depara com a ociosidade dos equipamentos e armazéns; a degradação das construções e perdas demográficas. Porém, inúmeros galpões destinados à organizações da sociedade civil e à atividades culturais ganham novos usos. A atividade portuária é deslocada em direção aos terminais de contêineres e Ro-Ro do Caju. Recentemente, a expansão da indústria petrolífera transformou os cais de São Cristovão em base de apoio para as plataformas off shore. A dinâmica comercial do porto urbano do Rio de Janeiro contradiz assim a opinião de uma decadência irremediável do mesmo. Nos últimos anos, a zona portuária passou por novas mudanças. Seguindo uma tendência mundial, as reservas fundiárias, os cais aptos a receber os navios de cruzeiro e a localização privilegiada próxima ao CBD suscitam interesses do capital e do poder público. Projetos de “revitalização” dos bairros portuários inspirados pelo “modelo de Barcelona” se sucedem, mas, com exceção de um plano de investimentos pontuais de em 200, nenhuma intervenção urbanística foi integralmente executada.
Os projetos de reconversão do Porto do Rio de Janeiro. (Elaboração: Vivia Silva, 2012)
No final dos anos 2000, as sinergias entre os níveis de governo e o ingresso da metrópole num novo ciclo de desenvolvimento viabilizam a execução do projeto “Porto Maravilha” numa cidade já escolhida para sediar jogos da Copa do Mundo de Futebol (2014) e Jogos Olímpicos (2016). A arquitetura institucional e tecno-administrativa fornece ferramentas necessárias à elaboração, ao planejamento, ao financiamento e a execução do projeto. A Operação Urbana lançada pela Prefeitura em 2009 propõe um modelo de governança Público Privado que integra as obras num pacote único atribuído, após leilão, ao consórcio Porto Novo. O mesmo executará as obras viárias, instalará redes técnicas e prestará serviços no perímetro de cerca de 5 milhões de m2 da Área de Especial Interesse Urbanístico. A Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (CDURP) atua como gestora da prefeitura na Operação Urbana Consorciada e como órgão de fomento do desenvolvimento socioeconômico.
A arquitetura institucional da operação urbana Porto Maravilha. (Elaboração: Frédéric Monié, 2014)
Para financiar a operação a prefeitura flexibiliza as regras de uso do solo e o direito do urbanismo e usa incentivos financeiros. Em 2011, Certificados de Potencial Adicional Construtivo são vendidos pela Caixa Econômica Federal às incorporadoras interessadas em construir edifícios mais altos do que normalmente seria permitido. Os benefícios da revenda dos CEPACs devem ser investidos na modernização das infraestruturas e dos serviços coletivos no perímetro do Porto Maravilha.
Porto Maravilha: lógicas de homogeneização e diferenciação
A reestruturação da zona portuária deve, segundo seus promotores, participar de um projeto de cidade que vai propulsar Rio de Janeiro entre as cidades globais do século XXI graças a recuperação urbanística da área, as melhorias da qualidade de vida e a contribuição ao desenvolvimento da metrópole. O projeto se inscreve num jogo de articulação do global e do local incorporando elementos presentes em todas as operações de waterfronts e atributos específicos ao território carioca. A apreensão da cidade como um empreendimento e da arquitetura como espetáculo (Harvey) impõe o padrão tecnocrático de cidade modelo – legitimado por amplas coalizões de atores – e elementos urbanísticos como museus, aquários, armazéns refuncionalizados, centros de convenções, escritórios, residências para a classe média e terminais de cruzeiro. Por outro lado, a valorização de recursos específicos ao território local produz uma lógica simultânea de diferenciação em relação aos projetos com baixa territorialização. Patrimônio histórico e memória cultural são incorporados, ás vezes simultaneamente, em circuitos produtivos e de consumo apresentados como antagônicos.
Operação urbanística “Porto Maravilha”
Operação Urbanística Porto Maravilha. (Fonte: Frédéric Monié, 2013)
A cultura do carnaval é, por exemplo, apropriada pelos circuitos superiores da economia que inserem a Cidade do Samba nas redes do turismo nacional e internacional produzindo territorialidades efêmeras de cunho mercadológico. Mas o Carnaval e o samba participam também de dinâmicas de resistência à homogeneização cultural animadas por coletivos de artistas, blocos carnavalescos e promotores de eventos caracterizados por uma forte inscrição territorial. Da mesma maneira, a herança africana participa da lógica do desenvolvimento do turismo na área portuária que inclui uma parada dos Cais do Valongo dentro de roteiros centrados na visita ao Morro da Conceição e ao Museu de Arte do Rio. Mas ela constitui também o foco de pesquisas, manifestações e lutas para por atores locais e movimentos da sociedade civil envolvidos na construção da cidadania numa cidade mais justa.
Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana. (Fonte: Frédéric Monié) Instituto dos Pretos Novos (https://www.pretosnovos.com.br); Porto Maravilha (https://www.portomaravilha.com.br)
O “Porto Maravilha” se insere então na lógica mercadológica da competição entre as metrópoles para captar os fluxos da globalização contribuindo para revalorizar uma áera portuária profundamente degradada. O mesmo projeto se traduz, no entanto, por dinâmicas negativas com destaque para a gentrificação que expulsa populações pobres e atividades consideradas “não nobres” dos bairros portuários. Para além dos elementos tradicionais da reconversão da interface cidade/porto, a construção de um projeto inovador de tipo working waterfront exigiria, porém, a integração dentro de uma mesma operação urbanística da atividade portuária, de serviços logísticos softs, da memória social e cultural do lugar e de projetos sociais em prol da cidadania e do desenvolvimento local.
Referências
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Bird J.H. (1963), The major seaports of the United Kingdom. Londres: Hutchison.
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Chaline C. (1988), La reconversão des espaces fluvio-portuaires dans les grandes métropoles. Paris, Annales de Géographie, n. 544, pp.695-715.
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Harvey D. (1989), Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola.
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Harvey D. (1996), Do Gerenciamento ao Empresariamento: A Transformação da Administração Urbana no Capitalismo Tardio. Espaço e Debates, n. 39, pp. 48-64.
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Hayuth Y. (1982), The port-urban interface: an area in transition. Area, n. 3, pp.219-224.
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Hoyle B. (1989), The port-city interface: trends, problems, and examples. Geoforum, n. 4, pp.429-435.
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Monié F., Vasconcelos F. (2012), Evolução das relações entre cidades e portos: entre lógicas homogeneizantes e dinâmicas de diferenciação. Revista Confins, n. 15. https://confins.revues.org/7685
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Le Marchand A. (2011), De la requalification spectaculaire au “working waterfront”. Rives Méditerranéennes, n. 39, pp. 65-80.
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Sànchez F. (2001), A reinvenção das cidades na virada do século: Agentes, estratégicas e escalas de ação política. Revista de Sociologia Política, n. 16, pp. 31-49.
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Smith N. (2002), New globalism, new urbanism: gentrification as global urban strategy, Antipode, n. 3, pp. 427-450.
Mapa da Operação Urbana Consorciada da Área de Especial Interesse Urbanístico da Região Portuária do Rio de Janeiro (Disponível em: https://www.portomaravilha.com.br/conteudo/operacaourbana/mapa-da-area-2-grande.jpg)