Seja por condições naturais ou por acção humana, os portos são espaços privilegiados de relação com o plano de água, em que se realizam actividades relacionadas com as pescas, com a construção e a reparação naval, com os transportes de carga e de passageiros, com a defesa, com os cruzeiros e o turismo, com a náutica de recreio, ou com o lazer e a cultura. Por serem lugares singulares e recursos de interesse público, o Decreto Régio de 31 de Dezembro de 1864 tornou públicas as águas do mar e respectivos leitos e margens, incluindo no “domínio público imprescritível os portos de mar e praias e os rios navegáveis e flutuáveis, com as suas margens, os canais de valas, os portos artificiais e as docas existentes ou que de futuro se construíssem”. Actualmente em Portugal, é da tutela das administrações portuárias a utilização dos recursos hídricos nas áreas do domínio público que lhes são afectas.
A actividade portuária no estuário do Tejo remonta à Idade do Ferro e à presença Celta na Península Ibérica, provavelmente desde o século X a.C. A sua extensão por inúmeros ecossistemas, distintas morfologias e unidades de paisagem, permitiu que ao longo dos séculos o Porto de Lisboa fosse um ponto fulcral na actividade económica nacional pela distribuição de bens agrícolas, pelo desenvolvimento industrial, pela produção de energia e, essencialmente, como a principal via de comunicação com o império colonial português, entre 1415 e 1975.
Praça do Império na Exposição do Mundo Português, 1940. (Horácio Novais – Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian)
Foi exactamente para assinalar o progresso de uma vasta nação ultramarina, com presença em três continentes, de Minho a Timor, celebrando o “duplo centenário” da fundação de Portugal (1140) e da restauração da independência (1640), que se inaugura em 23 de Junho de 1940 em Belém a Exposição do Mundo Português. As cerimónias de abertura não contariam com a presença de nenhum chefe de estado estrangeiro, talvez porque, no dia anterior, se assinaria em Compiègne a rendição e a ocupação da França pela Alemanha. Foram, no entanto, inúmeros os refugiados da 2ª Guerra Mundial que passaram por Lisboa, tal como Antoine de Saint-Exupéry, que escreveu que “Lisboa tinha construído a exposição mais bela do mundo, sorria com um sorriso um pouco pálido, como o das mães que não tendo notícias de um filho que está na guerra, se esforçam por o salvar só com a sua confiança…”
O Estado Novo criou logo em 1933 o Secretariado de Propaganda Nacional com o objectivo de coordenar e difundir a informação do regime em Portugal e no estrangeiro. A celebração da nacionalidade portuguesa, e a expressão do seu progresso através do governo, foi o mote na década de 1940 para a edificação do aeroporto de Lisboa, da auto-estrada, do Estádio Nacional, da construção de escolas, barragens e reconstrução de monumentos por todo o país. A Exposição do Mundo Português é talvez a maior manifestação ideológica do Estado Novo, enquadrando-se no entanto no contexto da propaganda colonial europeia da época.
O Restelo só ganha o topónimo de Belém a partir do período dos Descobrimentos, no século XV, quando é fundada uma ermida pelo Infante D. Henrique e, construída posteriormente pelo rei D. Manuel, a Igreja de Santa Maria de Belém. Esta mudança marca também a alteração do cais de partida da expansão do império português, da costa algarvia para as margens do Tejo. O estuário teria as condições naturais perfeitas para uma actividade portuária desta escala, quer pelas correntes marítimas, quer pelas condições logísticas que proporcionava, numa área extensa e com amplos recursos, pelo que a Praia do Restelo se tornariam uma das localizações fulcrais do Porto de Lisboa.
Foi também do Cais de Belém, entretanto mandado construir por D. José I no século XVIII, que partiu em 1807 para o Brasil a família real, na sequência da primeira invasão francesa. Transfere-se para o Rio de Janeiro toda a corte portuguesa, exercendo-se pela primeira e única vez a partir de uma colónia a soberania de todo um império europeu.
Por esta carga simbólica, e por ser Belém no início do século XX um território relativamente expectante e desordenado, em que a indústria coabitava com um importante conjunto monumental, que este lugar se tornou a escolha para a Exposição do Mundo Português. O evento começa a ser pensado a partir de 27 de Março de 1938, data a partir da qual António de Oliveira Salazar anuncia a comemoração do “duplo centenário”, mas a participação portuguesa na Exposição Internacional de Paris de 1937, com um pavilhão desenhado por Keil de Amaral na sequência de um concurso público, pode considerar-se um ensaio estético e programático para os pavilhões da própria exposição de Lisboa.
O plano geral da exposição, da autoria de Cottinelli Telmo, o arquitecto-chefe da exposição, partia do desenho da Praça do Império, centrada na fonte monumental e conformada pela fachada do Mosteiro dos Jerónimos, pelo Pavilhão de Honra e de Lisboa a nascente e pelo Pavilhão dos Portugueses no Mundo a poente. O recinto da exposição implanta-se numa área de aterro com cerca de 200 metros de perfil, que resultou das obras de melhoramentos do Porto de Lisboa, executadas entre 1890 a 1895 a partir do projecto dos engenheiros João Joaquim de Matos e Adolpho Loureiro, que desenham uma linha recta com mais de 5000 metros de cais entre a Rocha do Conde de Óbidos e a Torre de Belém.
As obras da exposição obrigaram a extensas demolições. Foram derrubadas construções da Marinha de apoio aos submarinos, que se encontravam na Doca de Belém desde 1918. Foram demolidos edifícios de habitação na envolvente nascente do Mosteiro dos Jerónimos e no quarteirão definido pela Rua Vieira Portuense e pela Rua de Belém, que avançava em frente à sua fachada.
Central Tejo durante a construção da Exposição do Mundo Português, 1940. (Horácio Novais – Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian)
Hoje, ainda são inúmeras as marcas da Exposição do Mundo Português na cidade de Lisboa. Em primeiro lugar, o traçado urbano de Belém é resultado directo da exposição. A ferrovia, que já existiria entre Alcântara e Cascais desde 1890, dividia o recinto, mas o plano alterou a sua implantação em 1939 para permitir o alargamento da Avenida da Índia, que se ligou posteriormente à Estrada Marginal da Costa do Estoril. O seu desenho foi incorporado no Plano Geral de Urbanização e Expansão da Cidade de Lisboa de Étienne de Gröer, concluído em 1948, e no posterior projecto para o Arranjo Urbanístico da Zona Marginal de Belém, de Cristino da Silva, que propunha um túnel para a linha do comboio, entre a Avenida da Torre de Belém e a Central Tejo. Esta ambição de abrir a Praça do Império até ao rio, seria de novo ponderada em 1992, depois da inauguração do Centro Cultural de Belém.
O principal memória edificada da exposição é o Padrão dos Descobrimentos, um projecto de Cottinelli Telmo que foi reconstruído em 1960 com alguns acertos na sua escala e implantação. Restam ainda, com maiores ou menores alterações e adaptações, o Pavilhão de Etnografia Metropolitana (Museu de Arte Popular), de Veloso Reis Camelo e João Simões, o Pavilhão dos Desportos Náuticos (Espaço Espelho de Água), de António Lino, a Estação dos Caminhos de Ferro de Belém, de Keil do Amaral, o Pavilhão dos Descobrimentos (Associação Naval de Lisboa) de Cottinelli Telmo e a Estação Fluvial de Belém, de Frederico Caetano de Carvalho.
Pode dizer-se que a ideia de Belém como pólo cultural ganhou importância logo após o encerramento da exposição, propondo Cristino da Silva em 1943 um Museu de Arte Contemporânea localizado no topo nascente da Praça do Império. O Palácio do Ultramar, projectado em 1954, implanta-se no lugar onde será construído em 1992 o Centro Cultural de Belém, um projecto de Vittorio Gregotti e Manuel Salgado, elaborado na sequência de um concurso internacional em duas fases. Em 1962 é inaugurado o Museu de Marinha e, em 1964, é concluído o Planetário Calouste Gulbenkian, que são ambos projectos de autoria de Frederico George, que rematam o topo norte da Praça do Imperio.
A Central Tejo foi, desde a sua construção em 1908, outro elemento marcante da frente ribeirinha de Belém e da sua memória industrial. Esta central de produção de energia eléctrica a partir do carvão, propriedade das Companhias Reunidas de Gás e Electricidade, passa por força da nacionalização para a posse da EDP em 1975, ano da sua desactivação. Em 1986 é instituído neste edifício o Museu da Electricidade.
Em 1983 a Torre de Belém e o Mosteiro dos Jerónimos são inscritos na lista de património mundial da UNESCO. Se juntarmos a estes monumentos o Palácio Nacional da Ajuda, o Jardim Botânico da Ajuda, o Museu da Presidência de República, o Museu dos Coches, o Padrão dos Descobrimentos, o Museu de Arte Popular, o Jardim Botânico Tropical, a Fundação Centro Cultural de Belém, o Museu Colecção Berardo, o Forte do Bom Sucesso, o Museu de Arqueologia, o Museu de Marinha e o Museu de Etnologia, constatamos que já são mais de 16 os monumentos e museus inseridos no eixo Belém-Ajuda. O projecto do novo edifício do Museu dos Coches, da autoria de Paulo Mendes da Rocha, inaugurado em 2015, a norte da Praça Afonso de Albuquerque, propõe mais uma vez uma ligação à área ribeirinha, sobre a linha de Cascais e a Avenida da Índia, que está ainda por executar.
[one_half_last]
[/one_half_last]
Vista da Central Tejo, anos 40. (Amadeu Ferrari – Arquivo Municpal de Lisboa) Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia, 2016. (Fernando Guerra, www.ultimasreportagens.com)
O termo “propaganda” caiu em desuso na língua portuguesa, sendo substituído por expressões como marketing e comunicação empresarial ou responsabilidade social corporativa. O Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia, é uma obra da Fundação EDP, fundada em 2004, e que se ocupa do desenvolvimento e apoio a iniciativas de natureza social, cultural, científica, tecnológica, educativa, ambiental e de defesa do património. O Prémio Novos Artistas é promovido desde o ano 2000, altura em que se inicia a Colecção de Arte Fundação EDP, um das mais importantes acervos nacionais. A EDP é o maior grupo energético português, com 70% da energia produzida com recurso a energia renováveis. Foi uma empresa pública, entretanto reprivatizada em 2012, que era proprietária da Central Tejo.
O projecto do Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia terá sido encomendado em 2011 por António Mexia, CEO da EDP, a Amanda Levete pelo “facto de ser mulher”, com uma arquitectura “orgânica”, admitindo que se pretendia afastar morfologicamente da arquitectura portuguesa, no seu entendimento, com uma volumetria de expressão mais pura, assumindo claramente a importância da forma na construção de um ícone arquitectónico de alcance internacional e acolhimento popular. A fluidez das suas formas é também uma expressão das circulações exteriores e interiores no edifício, dominado pela presença da “Galeria Oval” com 1.180 m2 e que flui para as restantes galerias. O edifício, com um total de 2.855 m2 de espaços expositivos, conforma, a partir da sua cobertura e acessos, mais de 6.000 m2 de espaço público exterior.
Vista de cobertura. (Fernando Guerra, www.ultimasreportagens.com)
Nas palavras de Amanda Levete, este é um objecto que pretende reconciliar a divisão entre a cidade e o rio, pelo que os seus espaços interiores se desenvolvem abaixo do nível do solo, de forma a minimizar a obstrução das vistas. Ainda assim, os 12 metros de altura libertam para a galeria principal um vão livre com 70 metros de comprimento. O contexto com a materialidade e a luz de Lisboa compõe-se sobretudo com o reflexo do material cerâmico da fachada, produzido pela Ceràmica Cumela, de Barcelona, e com a utilização da pedra lioz, presente nos cais de toda a frente ribeirinha.
O MAAT implanta-se a nascente da Central Tejo, no espaço anteriormente ocupado com outras construções da central térmica e pelo antigo parque de carvão. Este projecto admite um diálogo com o contemporâneo edifício do Museu dos Coches pelo contraponto da sua linguagem arquitectónica e pelo facto de ambos preverem pontes sobre a ferrovia, condição que necessariamente encadeará ambos os museus no mesmo circuito. Se o edifício desenhado por Paulo Mendes da Rocha liberta o piso térreo, o MAAT define com a sua cobertura uma topografia, com um projecto de arquitectura paisagista de Vladimir Djurovic que se funde com o espaço público a nascente, criado nos anos 90 pela desocupação de áreas portuárias. Esta obra, executada numa primeira fase com a assessoria do arquitecto Alcino Soutinho, e numa segunda fase com projecto de Rui Alexandre, técnico do Porto de Lisboa, criou novas áreas verdes e de lazer no espaço anteriormente ocupada pelos estaleiros da Ponte 25 de Abril, entre Alcântara e a Junqueira.
Vista de Norte da escadaria de acesso ao Museu. (Fernando Guerra, www.ultimasreportagens.com)
Este itinerário continuo ao longo do rio foi consolidada em 2009, na sequência da transferência para o domínio público do Município de Lisboa de uma área em Santos sem utilização portuária, que permitiu o desenho pelo arquitecto paisagista João Gomes da Silva de um percurso ciclável com 7 quilómetros, que serpenteia entre uma heterogeneidade de texturas e paisagens urbanas de docas, cais e outras infra-estruturas portuárias, entre o Cais do Sodré e o Jardim da Torre de Belém. Este último espaço verde, com cerca de 5 hectares, é um projecto do arquitecto paisagista António Viana Barreto de 1954, é um importante exemplo de apropriação de uma área portuária por espaço público e pelo carácter simbólico que encerra, no enquadramento à Torre de Belém, que estava ensobrada desde 1887 pela fábrica da companhia de “Gaz de Lisboa”, no seu entorno. A sua demolição, reclamada desde o início do século XX, e prevista no contexto da Exposição do Mundo Português, só se iniciou efectivamente em 1949.
Vista de Sul da entrada do MAAT. (Fernando Guerra, www.ultimasreportagens.com)
O poder de um ícone arquitectónico, capaz de gerar expectativa sobre um lugar e celebrar o carácter global de uma cidade, é tão presente hoje como foi em 1940, pelo que a sua construção é tão importante como o seu registo fotográfico e a forma com essa imagem é propagada pelo mundo. Pelas 124.234 fotografias do MAAT partilhadas em cerca de seis meses no Instagram, esse objectivo parece ter sido atingido. Para a cidade de Lisboa ficará um novo equipamento cultural e mais uma obra que conduz ao usufruto de uma área ribeirinha sem actividade portuária exclusiva, num programa que se terá iniciado há cerca de oitenta anos.
Bibliografia
Melâneo, P. et al. (2016) “Novo edifício do MAAT, Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia”, disponível em https://www.jornalarquitectos.pt/pt/jornal/no-rescaldo-outonal/novo-edificio-do-maat-museu-de-arte-arquitectura-e-tecnologia
Nabais, A. J., Ramos, P. O. (1987), “100 Anos do Porto de Lisboa”, Administração do Porto de Lisboa, Lisboa.
Ramalho, M. et al. (2016), “Exposição do Mundo Português, Explicação de Um Lugar”, Fundação Centro Cultural de Belém, Lisboa.
Saint-Exupéry, A. (1959) “Œuvres”, Galllimard, Paris.
Head Image: O Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia visto do Rio Tejo. (Fernando Guerra, www.ultimasreportagens.com)