A regeneração e requalificação da frente ribeirinha da baixa pombalina, correspondente à faixa compreendida entre as estações ferroviárias de Santa Apolónia e do Cais do Sodré, numa extensão de cerca de 2,5km, resultou, é preciso dizê-lo, de uma grande operação urbanística pensada, discutida e preparada ao longo de quase 30 anos, num longo processo que envolveu não só diversos Governos e a Câmara Municipal de Lisboa, mas também a Administração do Porto de Lisboa, a Marinha Portuguesa, os grandes operadores de transportes públicos – Metropolitano, Carris e Transtejo – e, mais recentemente, a Associação de Turismo de Lisboa.
Neste quadro, a realização das obras da Praça do Comércio/Terreiro do Paço, em 2009/2010, constituiu a primeira grande intervenção no espaço público, à qual se seguiram as da Ribeira das Naus, das praças do Cais do Sodré e Duque da Terceira e do Largo do Corpo Santo, das ruas do Arsenal e da Alfândega, estando atualmente em fase de desenvolvimento as obras do setor nascente, designadamente no Campo das Cebolas e no Terminal dos Cruzeiros e, ainda em projeto, a área da Doca da Marinha e a praça de Sul e Sueste.
A integração de um conjunto diversificado de projetos de espaço público que incluiu também a realização de grandes infraestruturas, entre as quais o prolongamento do Metropolitano de Lisboa a Santa Apolónia e ao Cais do Sodré e a renovação das redes de saneamento, resultou de um processo muitas vezes mais dinamizado pela necessidade de concertação entre decisões de diversas entidades e de compatibilização entre ações ocasionalmente sobrepostas no espaço e no tempo, do que por um plano global de intervenção para toda a área. Mas apesar de nem sempre ter havido um trabalho desejável de coordenação institucional e de projeto sistemático e continuado, o processo teve alguns marcos fundamentais que permitiram uma progressiva sedimentação de ideias e de critérios que foram balizando, ao longo do tempo, as decisões políticas, as referências conceptuais dos projetos e as suas opções técnicas.
Neste sentido, numa perspetiva mais alargada no tempo, pode considerar-se que o início da mudança de paradigma da relação da cidade, e desta área em particular, com o Rio teve como primeiro momento de referência o “Concurso de Ideias para a renovação da Zona Ribeirinha de Lisboa”, promovido pela Associação dos Arquitectos Portugueses em 1987, com o apoio, entre outros, da Câmara Municipal de Lisboa, do Instituto Português do Património Cultural e da Administração do Porto de Lisboa, com o patrocínio do Presidente da República. Esta iniciativa traduziu a vontade latente ao longo da década de 1980, no meio cultural lisboeta, de valorizar a relação de Lisboa com o Tejo no sentido, como se expressou na altura, de “Voltar a Cidade ao Rio”.
Poucos anos depois, em 1990, a Câmara Municipal de Lisboa deu início à elaboração do Plano Estratégico (1990-1992) e do Plano Diretor Municipal (1990-1994), nos quais foi dada à frente ribeirinha, designada no modelo territorial de referência de “Arco Ribeirinho de ligação da Cidade com o Rio”, uma importância destacada enquanto espaço de requalificação urbana e ambiental e de valorização dos modos de vida urbanos. Foi nesta linha que a Câmara Municipal promoveu, em 1993, um concurso de ideias para a Praça do Comércio, com o objetivo de eliminar o estacionamento que ocupava a placa central desde a década de 1960 e revalorizar aquele espaço. Mas aquela orientação estratégica, fundamental para o ordenamento urbano da frente do Rio, implicou, também, repensar mais profundamente a relação da Cidade com o Porto e, inevitavelmente, reconfigurar as relações institucionais entre a Autarquia e a Administração do Porto de Lisboa.
Ao mesmo tempo, por seu lado, a Administração do Porto de Lisboa realizou o Plano de Ordenamento da Zona Ribeirinha, POZOR (1993-1994), que, na linha de um verdadeiro plano de urbanização de competência municipal, teve o mérito de delimitar, na zona de jurisdição do Porto de Lisboa, as áreas de interesse para a operação portuária diferenciando-as de áreas de possível uso urbano não portuário. Esta diferenciação consolidou-se, mais tarde, no Plano Estratégico do Porto de Lisboa, de 2007, e através da progressiva transferência para as autarquias locais ribeirinhas dos terrenos sem interesse para a operação portuária.
Em 1996, o Governo tomou a iniciativa de promover o projeto de um túnel rodoviário para o Terreiro do Paço e de criar uma “Comissão Instaladora da Empresa para a Requalificação da Zona entre o Cais do Sodré e Santa Apolónia”. No primeiro caso, o projeto foi abandonado em 2000 após o acidente verificado nas obras da estação do Metropolitano. No segundo, a comissão foi extinta no final de 1997 por falta de entendimento entre o Governo e a Autarquia.
Inviabilizada a possibilidade de construção do túnel rodoviário e falhada aquela tentativa de gestão integrada das operações urbanísticas, as intervenções que se seguiram nesta zona da cidade, sobretudo da iniciativa da Câmara Municipal, do Metropolitano ou do Porto de Lisboa, embora executadas de forma casuística, adotaram algumas formas de coordenação institucional na tomada das decisões.
Dez anos depois, em setembro de 2006, a Câmara Municipal apresentou, através de nova comissão – Comissariado Baixa-Chiado – um dos documentos mais abrangentes e consistentes até então elaborados: a Proposta de Revitalização para a Baixa-Chiado, com vista à “recuperação, reabilitação e revitalização da Baixa-Chiado no desenvolvimento competitivo de Lisboa”. Neste documento o espaço público da Zona Ribeirinha teve um tratamento específico e destacado, onde se perseguiam alguns objetivos e ideias-chave já antes trabalhados e que seriam posteriormente desenvolvidos.
Dois anos depois, em 2008, foi constituída a Sociedade Frente Tejo SA, participada pelo Estado (60%) e pelo Município (40%), com o objetivo de desenvolver os estudos e projetos para a reabilitação da Frente Ribeirinha da Baixa Pombalina entre as estações do Cais do Sodré e de Santa Apolónia. Neste âmbito foi, então, desenvolvido o Projeto Geral do Espaço Público para toda aquela área de intervenção e, na sua sequência, desenvolvidos os projetos de execução parciais para a Praça do Comércio/Terreiro do Paço e para a Ribeira das Naus, cujas obras foram de imediato iniciadas, e ainda para as praças do Cais do Sodré e do Corpo Santo. Com a extinção daquela sociedade em 2011, a Câmara Municipal assumiu as operações e deu seguimento às respetivas obras e aos projetos dos restantes espaços públicos.
A realização de um projeto de conjunto, que estabeleceu as orientações gerais de estruturação e organização do espaço público, permitiu: em primeiro lugar, de um ponto de vista conceptual, o reconhecimento e valorização diferenciada pela importância histórica, patrimonial e das aptidões e potencialidades de uso, das diferentes tipologias de espaços compreendidos na área de intervenção; em segundo lugar, definir um esquema geral de circulação rodoviária que se mostrou determinante para a remodelação dos espaços e para o alargamento da sua utilização pelos peões; e, por fim, de um ponto de vista operacional, a definição de áreas específicas para o desenvolvimento dos diferentes projetos parciais para a remodelação e construção dos diversos espaços.
Estes aspetos, combinados entre si, permitiram garantir alguma coerência e articulação entre projetos, especialmente tendo em conta o distendido horizonte temporal da sua concretização e a diversidade de atores envolvidos na sua implementação.
Terreiro do Paço/Praça do Comércio
No que refere ao projeto para o Terreiro do Paço/Praça do Comércio, atendendo à delicadeza da intervenção e às suas implicações quer ao nível do património quer ao nível do programa geral de ordenamento da frente ribeirinha, foi desenhada, num primeiro momento, uma “matriz” definidora da geometria do “chão” da praça. Esta matriz baseou-se, antes de mais, no entendimento de que a Praça do Comércio, sendo uma Praça Real, se destaca, sobretudo, por ser, também, uma Praça-Cais, e teve como principais referências do desenho os elementos estruturantes do projeto pombalino e a métrica estabelecida pelos edifícios envolventes.
Planta do Terreiro do Paço/Praça do Comércio. (Fonte: Bruno Soares Arquitectos)
Nesta fase inicial, propuseram-se os tipos de utilização dominantes para os quatro setores da praça. Assim: o topo norte foi afetado predominantemente ao transporte público; o sul, ao passeio ribeirinho que se desenvolve ao longo de toda a frente do rio entre Cais do Sodré e Santa Apolónia; os passeios laterais, adjacentes às arcadas, foram alargados com vista a proporcionarem uma utilização mais confortável e intensiva pelos peões; e, a placa central foi destinada a uma utilização “livre”, com a possibilidade, de acordo com o seu papel histórico de espaço de representação, de acolher grandes concentrações de pessoas nomeadamente com a realização de eventos.
Estas opções, balizadas por um conjunto de intenções de natureza conceptual, como foram a reposição da simetria da praça, a valorização da sua grande dimensão e monumentalidade, a axialidade do Eixo Monumental e a importância singular do Cais das Colunas, resultaram numa proposta inicial de desenho, a qual, foi sujeita a um aceso debate público e, depois, desenvolvida nas fases subsequentes de projeto.
Nas opções deste projeto devem ser destacados 4 aspetos:
- A valorização do Cais das Colunas como elemento singular e diferenciador desta praça real, através da sua reintegração no eixo Monumental através da marcação do pavimento e dos degraus que anunciam a sua presença no interior da praça.
- A adoção, na placa central, de um padrão de linhas diagonais em lioz, no sentido de afirmar a grande dimensão da praça e a sua abertura perspética ao Rio, e a utilização do pavimento de betuminoso descolorado com gravilha de lioz como memória do “terreiro” que ali existiu desde o século XVI.
- A referência, através do desnível criado no canto sudoeste da placa central, ao facto histórico de as fundações do torreão e de parte da arcada poente da praça terem abatido durante o período da sua construção.
- O rebaixamento das cotas da placa central no sentido de sobrelevar a estátua real e de melhorar as condições de drenagem superficial reduzindo os riscos de inundação.
Perspetiva aérea do Terreiro do Paço/Praça do Comércio (Fotografia: Sara Constança)
Cais do Sodré/Corpo Santo
O Cais do Sodré é uma das principais interfaces de transportes públicos da cidade de Lisboa, onde passam diariamente mais de 100.000 pessoas. Por isso, de forma muito distinta da intervenção na Praça do Comércio, no projeto de renovação e requalificação do espaço público da zona do Cais do Sodré / Corpo Santo a abordagem incidiu, sobretudo, nos problemas da circulação rodoviária, em particular dos transportes públicos, e da circulação dos passageiros nas transferências entre os diversos modos de transporte.
Assim, o projeto teve por principal objetivo valorizar as funções de interface de transportes, reordenando a circulação rodoviária, os terminais de autocarros e de táxis, estabelecendo a continuidade do corredor dedicado aos autocarros e elétricos, na sequência do existente na Avenida 24 de Julho, e aumentando as áreas dedicadas aos peões, garantindo, em condições de segurança e conforto, os percursos necessários ao funcionamento da interface e as ligações às áreas envolventes, entre as quais ao passeio ribeirinho, na continuidade do Terreiro do Paço e da Ribeira das Naus.
Por outro lado, o próprio âmbito territorial da intervenção compreendia um conjunto de espaços públicos de diversas tipologias, os quais mereceram diferentes tratamentos.
Planta geral da área de intervenção do Cais do Sodré/Corpo Santo. (Fonte: Bruno Soares Arquitectos)
Assim, na praça do Cais do Sodré, procurou-se, sobretudo, restituir a integridade da placa central de suporte ao Jardim Roque Gameiro, anteriormente retalhada pela circulação e estacionamento automóvel, reinterpretando a tipologia de praça-jardim característica da Lisboa oitocentista. Restabeleceu-se, deste modo, um espaço de passeio e estadia na proximidade do rio, que contribui, ao mesmo tempo, para a valorização ambiental e paisagística da interface de transportes de passageiros.
Também nesta área, foi criado um novo eixo de circulação orientado no sentido do Rio, marcado por dois alinhamentos arbóreos (salix tortuosa) permitindo a leitura deste a partir da Rua do Alecrim e assegurar a articulação deste espaço com a frente ribeirinha, no Cais da Pombas.
No desenho do Largo do Corpo Santo, por outro lado, o objetivo central foi o de restituir a integridade a um espaço histórico amputado, do seu lado Sul, ao longo de anos ocupado com estacionamento. Neste caso, sendo necessário garantir a circulação dos transportes públicos e novos movimentos dos elétricos na sua convivência com o peão, a opção foi a de uniformizar pavimentos, a qual se consubstanciou no uso extensivo de calçada de granito e na aposição de uma malha reticulada de lajetas do mesmo material.
Para o conjunto da área de intervenção foi adotado no projeto o princípio de recuperação, integração e valorização dos elementos urbanos mais significativos, designadamente: i) as esculturas existentes (garantindo a desobstrução da sua leitura) e o quiosque da Carris (art deco, do início do século XX); ii) a preservação dos elementos arbóreos mais significativos (as tipuanas na entrada da Estação Ferroviária, também ela reconfigurada e de um desenho de calçada específico, a tipuana e a magnólia existentes na placa central, os lódãos e jacarandás nas alas da Praça Duque da Terceira e os dois plátanos na Avenida Ribeira das Naus); iii) os postes de iluminação pública originalmente instalados na área de intervenção; e, por fim, iv) as calçadas artísticas existentes na Praça Duque da Terceira (placa e passeios laterais) que foram objeto de restauro.
Perspetiva aérea do Cais do Sodré. (Fonte: Câmara Municipal de Lisboa)
Para concluir, queremos assinalar alguns aspetos transversais às abordagens efetuadas neste processo de revalorização da Frente Ribeirinha da Baixa Pombalina.
O primeiro, diz respeito à necessidade de abordar o espaço público na sua complexidade, a partir de uma leitura integrada (compreensiva) que permita entender e articular um conjunto muito diverso de problemas, interesses e competências, no âmbito dos quais as questões da arquitetura não podem deixar de ser equacionadas e compreendidas a diversas escalas espaciais e diferentes níveis de conhecimento.
O segundo corresponde à necessidade dos projetos, nas suas diversas componentes (do desenho, à escolha dos materiais e às soluções construtivas), serem capazes de se ajustar, nas suas ambições e objetivos, às diferentes tipologias de espaço público e reconhecer o seu diferente valor (histórico patrimonial, cultural e social).
Por último, a importância de articular os espaços projetados com as áreas envolventes, reconhecendo complementaridades de usos e de apetências no sistema urbano e assegurando a sua continuidade e permeabilidade.
Head Image: Perspetiva aérea do Cais do Sodré. (Fonte: Câmara Municipal de Lisboa)