Por meio do Programa REVAP (Revitalização de Áreas Portuárias), instituído pelo Ministério dos Transportes, através da Portaria Ministerial nº 908, de 27/10/1993, foi implantado o projeto Estação das Docas, nos galpões 01, 02 e 03, incluída a área denominada Galpão Mosqueiro e Soure, nas instalações do antigo Porto Organizado de Belém do Pará, cuja construção começou em 1997, com inauguração na data de 13 de maio de 2000, em uma área de 32 mil m2 e 500 m de cais no waterfront da baía de Guajará, tendo como objetivo a exploração de um complexo turístico, gastronômico e de lazer.
O referido complexo está localizado no bairro do Campina, na cidade brasileira de Belém, no Estado do Pará, à margem direita da baía de Guajará, em frente à Ilha das Onças, distando cerca de 120 km do Oceano Atlântico.
Ocupa o espaço de três galpões de ferro pré-fabricado, com 2000 m², incluindo um galpão de menores dimensões denominado de Galpão Mosqueiro e Soure, de origem francesa, originários da primeira fase de construção do porto (1909), que serviam para armazenagem de produtos de exportação, como: castanha, madeira, borracha, bauxita e minério de ferro, e que, no decorrer dos últimos anos, tinham se tornado não operacionais, em razão da transferência de muitas atividades para o porto de Vila do Conde, situado no município de Barcarena, também no Pará.
O porto de Belém foi projetado em 1897, pelos engenheiros Percival Farquhar, presidente da empresa americana Cia. Port of Pará, detentora da concessão para a construção e exploração portuária, Antônio Lavandeyra, H.C. Ripley e L. Corthell, este vice-presidente da empresa, sendo que suas obras foram iniciadas em 1906, tendo sua primeira parte (120 m de cais, dragagem do canal e um armazém de 2000 m²) sido inaugurada em outubro de 1909, com acréscimos até o ano de 1913, totalizando 1.860 m de cais, além de equipamentos, como: guindastes, vias férreas de acesso e sinalização fluvial, bem como aterramento de áreas adjacentes, com a utilização de mais de cinco milhões de m³ de material obtido pela dragagem do canal.
Os armazéns em arquitetura de ferro pré-fabricado foram produzidos pela empresa Schneider e Cia., estabelecida na cidade francesa de Creusot, da qual um dos fundadores, Joseph Eugène Schneider (1805 – 1875), por ter construído a primeira locomotiva a vapor da França, foi galardoado com a Legião de Honra Francesa, tendo seu nome gravado na Torre Eiffel, integrando um seleto elenco de setenta e duas personalidades que deram valiosa contribuição à República Francesa.
Maquete eletrônica do site oficial da Pará 2000, pessoa jurídica administradora do complexo Estação das Docas. (Disponível em: http://www.estacaodasdocas.com.br/pagina/espaco/ Acesso em: 12 Ago. 2019)
O presente artigo colima o objetivo de analisar a requalificação havida no uso dos antigos armazéns do Porto de Belém do Pará, de origem francesa, em arquitetura de ferro pré-fabricado, num modelo estético de urbanismo que teve uma fecunda fase com muitos exemplares na cidade, no final do século XIX e início do século XX, embalada pelo ciclo econômico que ficou conhecido como “Era da Borracha”, e que, culturalmente, se traduziu na fase chamada Belle Époque, pela forte influência europeia que caracterizava a classe mais abastada de então.
A restauração e requalificação de uso dos referidos espaços enquadra-se, também, numa tendência que se iniciou no reordenamento urbano de centros históricos de cidades portuárias da América do Norte e do Continente Europeu, citando-se como exemplo as cidades de Boston e Baltimore (EUA) e a catalã Barcelona, referindo-se, ainda, já na América do Sul, o projeto Puerto Madero, na platina Buenos Aires. Dentro dessa tendência, no entanto, o projeto Estação das Docas da cidade portuária de Belém do Pará configura uma iniciativa pioneira no Brasil. Tal projeto foi gestado em 1992, com obras iniciadas em 1997, com sua inauguração em 13 de maio de 2000.
O artigo também busca enfocar e principalmente questionar os seguintes pontos:
1. Na relação porto-cidade, até que ponto a disponibilidade para utilização de áreas portuárias para modelagens da espécie poderá comprometer o desenvolvimento de potenciais ou concretas oportunidades de atividades econômicas existentes ou que poderiam vir a se implantar na cidade, justo em razão dos fluxos logísticos viabilizados pela proximidade de um porto com capacidade operacional modernizada?
2. Até que ponto, também, essas áreas, tidas ou ditas como não operacionais, somente estariam nessa indicada condição, em razão de decisões havidas pela descontinuidade de investimentos que poderiam revitalizar e modernizar as operações portuárias de movimentação de cargas, desde que compatíveis com o ambiente urbano adensado (contêineres) e ainda com inegável efeito nos fluxos logísticos e negociais da cidade, com o melhor aproveitamento de suas vocações geoeconômicas?
O Projeto Estação das Docas, de Revalorização de Antigas Áreas Portuárias Não-Operacionais (REVAP)
Sobre esse equipamento urbano chamado Estação das Docas, muito se abordou ao longo destes quase vinte anos de sua inauguração às proximidades da virada do milênio, a maior parte das referências enfocando os benefícios para o lazer e entretenimento de uma população que, embora residindo na confluência de um caudaloso rio, o Guamá, com uma larga baía chamada de Guajará, viu sua cidade gradativamente voltar às costas para esse exuberante cenário da natureza, de forma que poucos lugares restavam para se apreciar o belo poente que se desenha e redesenha, diariamente, a zilhões de anos e que, particularmente, na pedra do cais, se apresenta como uma verdadeira obra de arte da mãe natureza.
Na expressiva obra “Porto de Belém do Pará: Origens, Concessão e Contemporaneidade”, da lavra de Euler Santos Arruda (2003), nas páginas 153 a 175, o autor faz uma abordagem panorâmica sobre os diversos planos de revitalização, como o Pró-Belém que se assentava no primeiro Plano de Desenvolvimento e Zoneamento dos Portos de Belém e Vila do Conde e que previa a transferência parcial das atividades do porto para o vizinho município de Barcarena, com destaque para as ações abarcadas pelo já citado Programa de Revitalização de Áreas Portuárias – REVAP, numa proposta de valorização da orla urbana da capital paraense, de recuperação das chamadas “Janelas para o rio”.
Fac-símile da imagem de apresentação da obra “Porto de Belém do Pará: Origens, Concessão e Contemporaneidade”, de Euler Santos Arruda (2003).
A Estação das Docas
Waterfront da Estação das Docas, com vistas da baía de Guajará. (Fonte: Aurelino Santos Jr., Julho de 2019)
Há décadas havia uma espécie de sonho frustrado coletivo nos habitantes da Cidade de Santa Maria de Belém do Grão-Pará, que era o fato de não se contar com uma bela orla voltada para o elemento água, pois apesar de Belém ser uma cidade fluvial não havia e ainda não há áreas de grande extensão onde a população possa ter um contato com a natureza amazônica. Daí o projeto Estação das Docas ser aos olhos da população uma bela janela para o rio.
A Estação é uma joia da cidade de Belém. Dizer que é um espaço turístico, também o é, mas, preponderantemente, sua frequência dá-se pelos habitantes da Urbe Morena ou Cidade das Mangueiras, em cognomes que, carinhosamente, a população dá à sua bela Belém, dotada de um acervo histórico incomparável, mas que, infelizmente, vem se deteriorando de forma acelerada. Daí a relevância do restauro estilizado (com certa modernidade ou retrofit) dos centenários galpões portuários para a ligação emocional que os habitantes cultivam em relação a espaços dessa natureza.
Poente na Estação das Docas. (Fonte: Aurelino Santos Jr., Julho de 2019)
Sustentabilidade financeira
A questão da inviabilidade de retorno financeiro do complexo Estação das Docas (ela sempre foi deficitária) não se apresenta como uma excepcionalidade em casos da espécie, sendo que a parceria entre o público e privado pode, tão-somente, mitigar uma despesa que se fosse assumida totalmente pelo erário público, por certo seria bem maior.
Cada novo equipamento urbano em uma cidade representa uma nova despesa para o resto da vida, para as gestões públicas e essa é uma realidade que não conhece limites.
As Pretensões da Expansão do Modelo de Revitalização para as demais Áreas do Porto Organizado de Belém
Movimento Orla Livre
Por volta do ano 1995 surge um movimento chamado Orla Livre. Uma iniciativa de alguns profissionais liberais que sonhavam que toda a área portuária de Belém e mais outras áreas litorâneas fossem objeto de uma intervenção urbanística radical.
Orla da Estação das Docas. (Fonte: Aurelino Santos Jr., Julho de 2019)
Mas, definitivamente, foi a implantação do complexo Estação das Docas que cultivou em muitos a expectativa de que esse modelo urbanístico bem poderia ser estendido para toda a área do antigo porto. Até que mais recentemente o Ministério da Integração Nacional iniciou a implantação de uma intervenção urbanística denominada “Belém Porto Futuro” [1], com abertura de uma via em terrenos da Companhia Docas do Pará – CDP e a inclusão no projeto da remodelação para novos usos dos antigos galpões, a partir do Galpão 4 até o 10, preservando os Galpões 11 e 12 e pátio adjacente para a movimentação de cargas preponderantemente conteinerizadas.
O Conflito entre a Expansão desse Modelo e a Viabilidade da Modernização da Atividade Portuária (o Porto Urbano), a Relação Porto-Cidade ou a sua total ausência na quase na quase Ex-Cidade Portuária de Belém
A ociosidade de grandes áreas de antigos portos urbanos, notadamente armazéns e pátios de acesso, constitui um fenômeno decorrente, não somente do surgimento de novos equipamentos portuários de maior capacidade operacional em áreas próximas, nos quais têm se concentrado volumes expressivos de escoamento de cargas, precipuamente, graneis sólidos minerais e vegetais, bem como líquidos, mas também, pela crescente conteinerização de cargas que necessita de áreas mais concentradas e por isso bem menores, os pátios ou terminais dotados de equipamentos que tanto carregam e descarregam com maior celeridade as embarcações, como as arrumam.
O grande exemplo dessa harmonização entre a disponibilidade de áreas portuárias não operacionais para implantação de equipamentos urbanos, sem prejuízo das operações do porto, constitui o caso do Rio de Janeiro, com o projeto Porto Maravilha de revitalização de antigas áreas portuárias que foi inspirado na experiência pioneira levada a efeito em Belém do Pará, com o projeto do Complexo Estação das Docas, objeto central da presente abordagem.
Quando observamos fotos antigas do centenário porto de Belém nossa imaginação recua ao tempo do Ciclo Econômico da Borracha [2], naquele final de século XIX e primórdios do século XX, o apogeu de um período absolutamente único na vida e na economia da Amazônia, para o qual a localização geográfica estratégica da cidade de Belém, quase na “esquina” do oceano Atlântico com o grande rio Amazonas foi determinante para que o fluxo das riquezas oriundas da exploração da borracha lhe colocasse como beneficiária direta de principal centro comercial e também financeiro Amazônia, captando recursos que em determinado momento chegaram a superar até as gerados pela tradicional economia do café.
No entanto, em que pese as abordagens oficiais, como muitos trabalhos e pesquisas elaborados sobre o complexo Estação das Docas, referirem seu caráter de resgate histórico, o referido empreendimento turístico/comercial/cultural não respira história. O lado físico restaurado está lá, ainda que modernizado nos materiais, pela técnica do retrofit [3]. Há no espaço até fotos-cartazes em estatura de tamanho natural de pessoas com a indumentária de época, como transeuntes do passado, olhando para os visitantes do agora, mas nada contando das ricas histórias em que os galpões e os prédios de seu entorno, inclusive o belo conjunto do Convento dos Mercedários [4], bem ao lado, foram testemunhas. Hoje, mesmo restaurados os espaços nada dizem em seu silêncio secular.
Um inadvertido visitante, turista ou não, que se aventure a indagar sobre os fatos que ocorreram naqueles espaços, de nada será informado, ainda que muito aprenda sobre as músicas e danças regionais, mercê dos eventos culturais, frequentemente, promovidos no espaço, o que de per si constitui um programa atraente.
Os restauros, a maioria deles, nas motivações e explicações que antecedem às obras e até como justificativa para o dispêndio da verba pública que têm sido preponderante nesses espaços, referem que a revitalização arquitetônica promoverá um valioso resgate da história, afinal trata-se de um patrimônio histórico, cultivando no seio da população um sentimento de pertencimento. Mas, na prática, não se vê esse sentimento, tão-somente, pela contemplação e mesmo frequência e uso do local.
Estação das Docas – Estacionamento. (Fonte: Aurelino Santos Jr., Julho de 2019)
Conclusão
A população da cidade de Belém ama a Estação das Docas, mas pouco ou nada sabe sobre a importância capital de uma cidade portuária manter seu porto como um forte agente de desenvolvimento socioeconômico e essa ideia de que a atividade portuária tem que ser até extinta para virar área de lazer e entretenimento impregna, inclusive, personalidades da sociedade belenense brilhantes em suas respectivas áreas, que se tivessem um pouco mais de conhecimento e, principalmente, convencimento sobre a absoluta importância de se ter um porto operacional, poderiam fazer o grande diferencial que a cidade precisa para resgatar sua verdadeira vocação geoeconômica de entreposto estratégico comercial e de serviço, com ampliação de sua influência na região e até nacionalmente.
Portões da Estação das Docas. (Fonte: Aurelino Santos Jr., Julho de 2019)
Notas
[1] Projeto Porto Futuro, do Governo Federal de intervenção urbana na área retro portuária de Belém.
(Disponível em: https://www.famep.org.br/single-post/2018/03/15/Capital-Paraense-ganha-Projeto-Bel%C3%A9m-Porto-Futuro).
[2] Ciclo Econômico da Borracha.
(Disponível em: https://www.todamateria.com.br/ciclo-da-borracha/. Acesso em: 12 Ago. 2019).
[3] Retrofit.
(Disponível em: http://www.forumdaconstrucao.com.br/conteudo.php?a=22&Cod=2088. Acesso em: 12 Ago. 2019).
[4] Convento dos Mercedários.
(Disponível em: http://www.ipatrimonio.org/?p=20275#!/map=38329&loc=-1.4507909999999968,-48.501094000000016,17. Acesso em: 12 Ago. 2019).
Referências
ALVES, Glória da Anunciação. Processos de requalificação das áreas centrais das cidades de Belém, Marabá e São Paulo. In GEOUSP (Online), São Paulo, v. 20, n. 2 364 – 375, mai./ago.2016.
ARRUDA, Euler Santos. Porto de Belém do Pará: origens, concessão e contemporaneidade. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003.
FREITAS, Ana Paula Nazaré de. Políticas Culturais e Consumo Cultural: um estudo dos públicos da Estação das Docas em Belém/PA. Dissertação (Mestrado em Políticas Públicas e Sociedade). Universidade Estadual do Ceará. Fortaleza, 2010.
JESUS, Rodrigo Poltosi Gomes de. Waterfronts Fluviais, uma análise por aproximação: a Estação das Docas de Belém e o Cais Mauá de Porto Alegre. In XII Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação – SEPesq. Centro Universitário Ritter dos Reis. 2016. Anais.
NEVES, Maria Fernanda Britto; KOLHY, Lélio Marcus Munhoz; CUNHA, Icaro Aronovich; CANEPA, Carla. Reconversão de áreas portuárias e atividades terciárias: casos das cidades de Santos e de Belém. In Revista Eletrônica Patrimônio: Lazer & Turismo, v. 6, n. 5, jun-fev-mar/2019, p. 95-112.
TAVARES, Amada Gama; KIOTANY, IIana Barreto. Repercurssões turísticas e sociais da revitalização de áreas portuárias – a Estação das Docas em Belém/PA. In Revista de Turismo Contemporâneo – RTC, Natal, v. 1, n.1, p. 18-37, jul./dez. 2013.
Head image: Estação das Docas – Pôr-do-Sol. (Disponível em: http://www.estacaodasdocas.com.br/pagina/noticiadetalhe/ID/230. Acesso em: 30 Set. 2019)