O sistema cidade-porto do século XIX (Chaline, 1988), caracterizado pela integração das funções marítimas, portuárias, comerciais, industriais e de serviços, entrou em crise sob o efeito do gigantismo naval e da transferência das indústrias e das infraestruturas portuárias para lugares distantes dos centros urbanos onde reservas fundiárias em áreas periféricas e sítios portuários em águas profundas atraem fábricas de grande porte e Zonas Industriais-Portuária (Monié, Vasconcelos, 2012). A perda de tráfegos pelos portos urbanos provocou a degradação das infraestruturas e da paisagem, o abandono de armazéns, a fuga de estabelecimentos comerciais e industriais, além de um processo de esvaziamento populacional.
Na década de 1970, a existência de áreas degradadas e “vazios urbanos” nas imediações dos CBD abre oportunidades de investimentos, num contexto de crise econômica e fiscal das cidades. Na metrópole pós-industrial, os bairros portuários se tornam fronteiras de acumulação para o capital imobiliário (Harvey, 1996). Os projetos de refuncionalização dos waterfronts, que ilustram o divórcio físico, gerencial, social e cultural da cidade e do porto, provocam uma “remodelação da frente marítima” (Hoyle, 1989). Os elevados níveis de lucratividade dos empreendimentos e a aceitação da sociedade facilitam a difusão espacial dos projetos de waterfronts (Monié; Silva, 2015).
Desde os anos 1990, operações urbanísticas participam do empresariamento da cidade que tem por instrumentos privilegiados o planejamento estratégico, o city marketing e as Parcerias Público Privado (Harvey, 1996). As cidades, administradas como empresas, competem para atrair fluxos de capital, turistas, executivos e grandes eventos. O projeto carioca Porto Maravilha participa dessa dinâmica de inserção competitiva dos territórios metropolitanos na globalização.
O Projeto “Porto Maravilha”
A reestruturação da área portuária carioca inscreve-se num momento específico da história da relação porto/cidade. Nas décadas 1920/40, o esgotamento da economia cafeeira e do modelo agroexportador e a redistribuição geográfica da atividade industrial acarretaram a retração da atividade portuária e a crise das atividades comerciais nos bairros portuários. Nos anos 1960, o gigantismo dos navios e das plantas industriais incentivaram a construção do porto-indústria de Sepetiba. No porto do Rio, tráfegos e das funções operacionais são relocalizados: os cais do Caju recebem terminais de contêineres e Ro-Ro e o de São Cristovão é gradualmente transformado em base de apoio para as plataformas de extração do petróleo das bacias de Campos e Santos.
A área portuária se depara, então, com a crescente ociosidade dos equipamentos e armazéns, a degradação das construções e perdas demográficas. As reservas fundiárias e os cais próximos ao CBD despertam interesses do capital e do poder estatal, enquanto a América latina experimenta os primeiros projetos de “revitalização” de bairros portuários (Buenos Aires, Belém etc.). Mas, as intervenções urbanísticas planejadas não são executadas até a 2ª metade dos anos 2000 quando as sinergias entre os diferentes níveis de governo, a escolha do Rio para sediar Jogos Olímpicos e jogos da Copa do Mundo de Futebol e o ingresso da metrópole num novo ciclo de desenvolvimento viabilizam a operação Porto Maravilha (Monié; Silva, 2015).
A reestruturação da zona portuária deve, segundo seus promotores, participar de um projeto de cidade que vai impulsionar o Rio de Janeiro entre as metrópoles globais do século 21. A Operação Urbana Consorciada da Região do Porto do Rio de Janeiro (Porto Maravilha) deve promover a reestruturação da Área de Especial Interesse Urbanístico (AEIU) da Região Portuária, por meio da ampliação, articulação e requalificação dos espaços livres de uso público. Para executar o projeto foi criada a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (CDURP), empresa de economia mista cujo acionista principal é o município do Rio de Janeiro. A Operação Urbana visa, concretamente, a requalificação da área portuária através da reconstrução e manutenção da infraestrutura local assim como da prestação de serviços públicos por meio de contrato de parceria público-privada por um prazo de quinze anos.
A refuncionalização dos armazéns portuários: os objetos urbanísticos “chaves” do projeto
Porto Maravilha participa da tendência de difusão mundial de um modelo urbano associado à uma uniformização da paisagem das cidades. O embelezamento da metrópole é uma estratégia fundamental da política de autopromoção de governos locais empenhados em construir uma imagem positiva de seu território para captar os fluxos da globalização: investimentos, pessoas e eventos (Monié, Vasconcelos, 2012). Na cidade empresa, administrada como o conselho de administração de uma corporação (Vainer, 2012), operações urbanísticas nas frentes d´água ilustram as tensões entre a busca pela competitividade econômica e pelo interesse geral.
Entre os equipamentos portuários dos projetos de waterfronts (entrepostos, guindastes, piers), a refuncionalização dos armazéns se beneficia do caráter relativamente modesto das obras a realizar. No Rio de Janeiro, os primeiros armazéns foram instalados nas docas Pedro II no contexto do ciclo do café que alavancou os tráfegos portuários na então capital do Brasil. Um porto moderno atentando as novas demandas dos clientes estava então sendo construído no aterro entre a Prainha (atual Praça Mauá) e Santo Cristo. Iniciada em 1904 pelos governos do presidente Rodrigues Alves e do prefeito Pereira Passos, a obra foi responsável pela construção de 20 armazéns principais e 52 secundários. O porto foi inaugurado em julho de 1910, depois de 6 anos de obras.
Planta dos armazéns originais de 1888. (Fonte: Arquivo Nacional)
No entanto, a partir dos anos 1950, o declínio da função de estocagem, consequente da diminuição dos tráfegos de graneis e carga geral, alimenta a crescente obsolescência do parque de armazéns, dos equipamentos e infraestruturas portuários. Na década de 1980, alguns desses armazéns ganham novos usos: construção de carros alegóricos por escolas de samba, centros culturais, estacionamentos etc. A operação Porto Maravilha transformou finalmente a capacidade ociosa e a degradação das estruturas de armazenamento em oportunidade de investimentos para atividades consideradas nobres – cultura mainstream, lazer, comércio, eventos.
Armazéns do Porto do Rio de Janeiro – 2014. (Fonte: Globo)
Armazéns do Porto Maravilha – 2016. (Fonte: https: www.portomaravilha.com.br)
Os armazéns, cuja estrutura e fachadas originais foram preservadas pelo tombamento pelo Patrimônio Histórico, passaram a sediar eventos como o Salão Carioca do Livro cuja primeira edição teve por palco os armazéns 2 e 3 do Píer Mauá em novembro de 2016. As exposições interativas, oficinas de escrita e exposições atraíram então mais de 84 mil pessoas. Por sua vez, o evento global itinerante Mondial de la Bière ocorre em 1919 pela terceira vez consecutiva nos armazéns da Gamboa que consolidam sua posição privilegiada entre os equipamentos de lazer cariocas.
Mondial de la Bière – 2018. (Fonte: https://www.piermaua.rio/galeria/)
Do seu lado, a transferência do Fashion Rio e do Arte Rio da Marina da Glória para os armazéns do porto simboliza a competitividade dos mesmos na competição para atrair eventos.
Art Rio 2002. (Fonte: https://www.piermaua.rio/galeria/).
A multiplicação de eventos, como feiras, exposições, shows, celebrações privadas ilustra, portanto, o papel dos armazéns na transformação de uma área da cidade comumente representada como repulsiva em polo maior de eventos culturais e de entretenimento.
Elementos de debates sobre a refuncionalização das áreas portuárias
Para promover sua inserção competitiva na globalização, as cidades portuárias privilegiam projetos de waterfronts transformando espaços degradados e “vazios urbanos” em territórios suscetíveis de atrair empresas, eventos, visitantes locais e turistas. A crítica mais contundente à essas operações diz respeito a expulsão de categorias da população fragilizadas pela especulação imobiliária (gentrificação) e pela política higienista das autoridades (Smith, 2002). No Rio de Janeiro, Porto Maravilha se traduziu, assim, pela remoção de moradores de favelas e de prédios ocupados por movimentos sociais.O caráter tecnocrático da política urbana é também questionado. A operação urbanística é legitimada por uma engenharia de consenso (Sanchez, 2001), elaborada por uma coalização de atores (Harvey, 1996) que promove um patriotismo de cidade considerado estratégico na competição intermetropolitana (Borja, Castells, 1998). Retórica legitimadora, identidade territorial e estratégias de marketing opõem progresso e atraso; ordem e desordem; harmonia e tensões no processo de construção da cidade pós terceiro mundo.
Dentro do jogo tradicional de articulação do global e do local, a difusão de objetos genéricos pelas operações de waterfronts é também alvo de críticas. Museus de arquitetura arrojada, mas sem acervos consistentes, aquários, rodas gigantes, marinas, hotéis padronizados, armazéns refuncionalizados etc. são elementos de uma paisagem relativamente uniforme. Observamos, no entanto, uma tendência paralela de valorização do patrimônio local que confere um sentido específico à operações urbanísticas. No Rio de Janeiro, a cidade do Samba, os roteiros de valorização da identidade afro-brasileira ou os blocos carnavalescos locais são ilustrativos da produção de um espaço urbano altamente territorializado nos interstícios da cidade pós-industrial. As práticas sociais e espaciais observadas no boulevard olímpico, onde o uso dos armazéns costuma ser restrito a categorias mais privilegiadas da população, mas cujo passeio é frequentando por um público muito heterogêneo, ilustram a complexidade dos usos desses novos espaços.
Referências
Bird, J.H. (1963), The major seaports of the United Kingdom. Londres: Hutchison.
Borja, J; Castells, M. (1998). Local y global. La gestíon de las ciudades en la era de la informacíon. Madrid: Taurus.
Chaline, C. (1988). La reconversion des espaces fluvio-portuaires dans les grandes métropoles. Paris, Annales de Géographie, n. 544, pp. 695-715.
Harvey D. (1996). «Do Gerenciamento ao Empresariamento: A Transformação da Administração Urbana no Capitalismo Tardio». Espaço e Debates, n. 39, pp. 48-64.
Hoyle, B. (1989), «The port-city interface: trends, problems, and examples». Geoforum, n. 4, pp. 429-435.
Monié, F; Vasconcelos, F. (2012), “Evolução das relações entre cidades e portos: entre lógicas homogeneizantes e dinâmicas de diferenciação”. Revista Confins, n.15, URL: http://confins.revues.org/7685
Monié, F; Silva; V. (2015) “O projeto Porto Maravilha de revitalização da área portuária do Rio de Janeiro entre inovações e retrocessos na produção do espaço urbano”. Revista Transporte y território. N. 12. pp. 110-126. ISSN 1852-7175.
Sànchez, F. (2001). «A reinvenção das cidades na virada do século: Agentes, estratégicas e escalas de ação política». Revista de Sociologia Política, n. 16, pp. 31-49.
Smith, N. (2002), «New globalism, new urbanism: gentrification as global urban strategy», Antipode, N. 3, pp. 427-450.
Head Image: Vista panorâmica do Terminal Marítimo de Passageiros, com os armazéns recuperados e a Praça Mauá, Porto Maravilha. (http://www.portonovosa.com)