╔
Relação porto-cidade em Santos, Brasil
Introdução
Santos é uma cidade portuária desde sua fundação, no século XVI. No entanto, embora hoje a relação porto-cidade em Santos se apresente de forma inovadora, nem sempre ela foi harmônica ou profícua.
Insta destacar que no final do século XIX, o Porto de Santos chegou a ser considerado “maldito”, por conta das condições sanitárias da cidade. Várias epidemias ocorreram concomitantemente, fazendo com que tripulações de navios fossem levadas para a cidade de São Paulo, ou isoladas em ilhota existente na entrada do canal de acesso ao porto, para evitar o risco de contaminação.

Praia e Rampa do Consulado, Porto de Santos, 1882. (Fonte: Acervo da Pinacoteca Benedicto Calixto).
No entanto, essa situação crítica gerou desdobramentos positivos para a cidade, em função da importância estratégica do Porto de Santos para o estado e país, por conta das exportações de café, do embrionário processo de industrialização e das imigrações europeias e asiáticas.
Para melhorar as condições ambientais da cidade e porto, foram feitos importantes investimentos em saneamento básico, com a construção de sistemas de coleta de esgoto e de drenagem inovadores para a época.
Essas obras permitiram a expansão das áreas urbanas em direção à orla, além de criar os marcos referenciais da cidade: os canais de drenagem, cuja construção foi concluída na década de 1920.

Sistema de canais de drenagem da cidade de Santos, 1910. Autor: Saturnino de Brito. (Fonte: Memória Santista).
A partir daí, porto e cidade passaram por um processo de adensamento em sua porção insular, com as atividades portuárias representando importante papel econômico e social.
Em 1888, um decreto imperial estabeleceu a figura do Porto Organizado, e o Porto de Santos foi o primeiro a ser criado no Brasil. Em 1890, foi constituída a Companhia Docas de Santos – CDS, entidade privada vencedora de certame licitatório nacional. A concessão foi de 90 anos. Em 28 de fevereiro de 1892, com a atracação do navio Nasmyth nos primeiros 260 m de cais, foi oficialmente inaugurado o Porto Organizado de Santos.
Navio Nasmyth. (Fonte: Rota de Ouro e Prata, José Carlos Rossini).

Em 1980, terminado o período de concessão, o Governo Federal assumiu diretamente a gestão do Porto de Santos, criando a Companhia Docas de São Paulo, atual Autoridade Portuária de Santos – APS.
Conflitos na relação porto-cidade
Por muitos anos, a relação porto-cidade foi distante, pouco efetiva, por vezes deveras conflitante, por conta de impactos negativos no sistema viário urbano e decorrentes de certas operações portuárias, sobretudo aquelas envolvendo granéis sólidos, principal produto de exportação.
Esse distanciamento foi agravado no período em que a cidade perdeu sua autonomia política, entre 1968 e 1983, quando passou a ser administrada por interventor nomeado pelo Governo Federal, considerada área de segurança nacional, por sediar o Porto de Santos, num momento politicamente conturbado do Brasil.
Nesse período, a legislação urbanística aprovada em 1968 nem sempre foi respeitada por iniciativas do Governo Federal, que posteriormente se converteram em desafios na relação porto-cidade, como foi o caso da implantação do primeiro Corredor de Exportação do País, no Bairro Ponta de Praia.
Embora arrendados a operadores privados, em razão da Lei dos Portos de 1993, os terminais do Corredor de Exportação continuaram operando equipamentos antigos, que emitiam material particulado que afetava significativamente as áreas urbanas majoritariamente residenciais existem no em torno.
O adensamento habitacional do Bairro Ponta da Praia tornou essa condição ambiental ainda mais grave, gerando reações da população contra esse tipo de operação. Além da emissão de material particulado, que potencializava a ocorrência ou agravamentos de doenças cardiorrespiratórias, os odores fétidos decorrentes da putrefação de resíduos granéis vegetais e da proliferação de ratos e pombos, vetores de doenças, também contribuíram para tornar esse tipo de operação o principal conflito na relação porto-cidade.
Em resposta ao clamor popular, e após várias tentativas e propostas de solução para o problema, a Prefeitura de Santos, em 2013, declarou esse tipo de operação desconforme, restringindo sua expansão e novos arrendamentos similares. No entanto, a Governo Federal recorreu ao Superior Tribunal Federal – STF, que suspendeu os efeitos da legislação municipal.
Esse embate teve o fator positivo de instar a Agência Nacional de Transportes Aquaviários – ANTAQ a exigir compromissos ambientais para renovações e novos contratos de arrendamento de terminais portuários.
Desde então, houve sensível redução do incômodo causado por esse tipo de operação.
Outro conflito decorreu da desativação do cais do Valongo, em 1988, que, associada à migração da população de maior poder aquisitivo para bairros da orla, mais modernos, e à consequente criação de novos centros comerciais, contribuiu para o esvaziamento do Centro Histórico do município.
Como forma de reverter essa situação, a Prefeitura de Santos passou a investir e fomentar a recuperação dessa importante região, também contando com o apoio do Governo do Estado de São Paulo.
Deterioração dos armazéns do cais do Valongo, Porto de Santos, 2023. (Fonte: G1 – Santos e Região, Erika Rios).

Como parte desse processo, foi criado o programa Alegra Centro, destinado a favorecer iniciativas de recuperação e ocupação de edificações particulares, respeitando a legislação urbanística e o patrimônio histórico da região.
Prédios históricos foram recuperados e passaram a ter uso continuado, abrigando repartições públicas e atividades culturais, tais como: a Casa de Frontaria Azulejada, Casa do Trem Bélico, Fundação Arquivo da Memória de Santos, Estação Ferroviária do Valongo, Teatro Coliseu e Teatro Guarany, entre outros. O Governo do Estado de São Paulo atuou na restauração da Bolsa do Café. Outra iniciativa importante do município foi a implantação da Linha Turística de Bondes Elétricos, que percorre vias do Centro Histórico, também se caracterizando como um museu a céu aberto, contando com veículos de vários países.
No entanto, o abandono da área portuária do Valongo prejudicava o processo de revitalização do Centro Histórico.

Estação do Valongo e bonde turístico. (Fonte: Prefeitura Municipal de Santos – PMS).
Um novo ciclo na relação porto-cidade
A partir da década de 2000, esse cenário começou a mudar.
Tanto a Prefeitura de Santos como a Autoridade Portuária de Santos entenderam a importância de conjugarem esforços em nome de interesses comuns, incluindo o resgate da identidade portuária de seus habitantes, e a revitalização da área do Valongo passou a ser objeto de estudos.
Em 2005, com a criação da Secretaria Municipal de Assuntos Portuários e Marítimos, a interlocução entre a cidade e o porto ganhou novos contornos, permitindo que outras Secretarias participassem de processos e projetos de interesse comum, incluindo a solução de conflitos existentes.
Merecem destaque a criação da Comissão Municipal de Avaliação de Impacto de Vizinhança – COMAIV, em 2013, que passou a avaliar empreendimentos públicos e privados propostos para a cidade de Santos; e da Comissão Municipal de Adaptação à Mudança do Clima – CMMC, em 2015, atualmente coordenadas pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Desenvolvimento Urbano e Sustentabilidade – SEMAM, ambas congregando outros órgãos e empresas municipais.
Uma das primeiras iniciativas da CMMC foi a elaboração do Plano Municipal de Mudança do Clima de Santos – PMMCS, em 2016, antes mesmo que o Governo Federal tivesse iniciativa análoga, o que despertou interesse do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, que promoveu parceria com a Prefeitura de Santos, integrada ao ProAdapta – Projeto de Apoio ao Brasil na Implantação da sua Agenda Nacional de Adaptação à Mudança do Clima, em aliança com a Cooperação Alemã para o Desenvolvimento Sustentável (GIZ, sigla em alemão para Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit – GmbH). A GIZ trouxe reforço técnico à implementação da primeira fase do plano e à sua atualização.
Foi a partir dessa colaboração que a CMMC sugeriu que o sistema portuário nacional também fosse incluído nos estudos. Afinal, se cidades litorâneas são particularmente suscetíveis aos efeitos da mudança do clima, sobretudo no caso de eventos climáticos extremos, as cidades portuárias são ainda mais sensíveis, na medida em que os complexos portuários são responsáveis por mais de 90% do comércio exterior. Assim, os aspectos econômicos, sociais e ambientais devem envolver todo o território.
Essa sugestão foi acatada, sendo que a GIZ, em associação com a Agência Nacional de Transportes Aquaviários – ANTAQ, produziu estudos sobre impactos da mudança do clima em 21 portos públicos brasileiros, selecionando três deles, geograficamente significativos (Santos, Aratu e Rio Grande), para maior detalhamento.
Nesse contexto, é relevante destacar que a cidade e o porto têm sido constantemente afetados por eventos climáticos extremos, sobretudo ressacas.
No caso do porto, já houve interrupções do acesso aquaviário, bem como paralisações de operações portuárias, principalmente com granéis sólidos.
Já no que se refere à cidade, além de danos materiais e comprometimento da circulação em determinadas vias públicas, também vinha ocorrendo processo de erosão nas praias. Iniciativa da Prefeitura de Santos, a partir de recursos financeiros disponibilizados pelo Ministério Público, permitiu a implantação de projeto-piloto de proteção costeira utilizando geobags, a partir de estudo feito pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. A Autoridade Portuária de Santos, como parte da repactuação do Termo de Ajustamento de Conduta firmado com o Ministério Público, promoverá a manutenção e ampliação dessa obra de proteção costeira.
Projeto-piloto de proteção costeira com geobags. (Fonte: Prefeitura Municipal de Santos/Unicamp).

Vale mencionar que, quanto à COMAIV, a análise de Estudos de Impacto de Vizinhança – EIVs tem resultado em medidas mitigadoras e compensatórias de extrema relevância, que têm contribuído para melhorar a qualidade de vida da população.
No caso de empreendimentos portuários, retroportuários e logísticos, essas compensações se enquadram nos conceitos de Environmental, Social and Governance – ESG e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS, contribuindo para a imagem dos empreendedores.
Essas compensações permitiram a implantação de unidades de saúde, escolas, restauração de patrimônio histórico e equipamentos culturais, reurbanização de vias públicas e áreas degradadas, revitalização do Mercado Municipal e da Estação Rodoviária, investimentos na Fundação Parque Tecnológico de Santos, restaurante popular e instalações de segurança pública, dentre outros equipamentos.
Merecem destaque especial: a criação do Parque Valongo, que contou com a participação da Prefeitura de Santos, da Autoridade Portuária de Santos e de operadores portuários privados; a reurbanização do Parque Municipal Roberto Mário Santini; e o Parque Palafitas.
Parque Valongo. (Fonte: Prefeitura Municipal de Santos – PMS).

O Parque Valongo é a consumação da proposta de revitalização e integração urbana da área portuária desativada desde 1988. Ele inclui armazéns recuperados, destinados a eventos, áreas de lazer, contemplação e esportes, além de píeres para atracação de embarcações.
A reurbanização da Avenida Rei Pelé, no Bairro Ponta da Praia, incluiu seu alteamento, contribuindo para mitigar os efeitos deletérios de ressacas, compondo com a obra de proteção costeira do projeto-piloto da UNICAMP.
A cidade de Santos dispõe de meios para antecipar eventos climáticos extremos, com base em convênio firmado com a Universidade Santa Cecília – Unisanta, que prevê o fornecimento de dados produzidos por seu Núcleo de Pesquisas Hidrodinâmicas – NPH.
Reurbanização do calçadão da Ponta da Praia, na Avenida Rei Pelé. (Fonte: Viajante Econômica).

O Parque Municipal Roberto Mário Santini incluiu equipamentos destinados a esportes radicais e de lazer, além de contar com escultura idealizada pela artista plásticas Tomie Otake, uma referência na orla de Santos, compondo o maior jardim de praia do mundo, segundo o Guinness Book of Records.

Parque Municipal Mário Santini. (Fonte: Terracom).
Já o Parque Palafitas é um capítulo à parte. Concebido pela equipe do saudoso Arquiteto Jaime Lerner, como parte de uma parceria entre a Prefeitura de Santos e a Organização da Sociedade Civil Comunitas, esse projeto prevê a urbanização de áreas onde existem habitações subnormais, ao longo do Rio São Jorge.
As palafitas precárias serão progressivamente substituídas por plataformas sobre pilotis, dotadas de edificações adequadas, equipamentos públicos, e infraestrutura de saneamento e energia, proporcionando dignidade e integração social de seus moradores. Esse projeto recebeu premiação internacional.

Palafitas atuais. (Fonte: Estadão).

O projeto do “Parque Palafitas”. (Fonte: Prefeitura Municipal de Santos – PMS).
A interface com a Autoridade Portuária de Santos, mediada pela Secretaria de Assuntos Portuários e Emprego, também tem permitido a participação da Prefeitura de Santos na análise de projetos e iniciativas portuárias, com interações urbano-portuárias, tais como: Poligonal do Porto Organizado de Santos, Plano de Desenvolvimento e Zoneamento do Porto de Santos, transferência do terminal de cruzeiros marítimos, arrendamentos de terminais portuários, novos acessos viários, com destaque para o túnel entre Santos e Guarujá, para citar apenas alguns exemplos.
Considerações finais
Resumindo, a relação porto-cidade está em contínuo processo de aprimoramento, beneficiando direta e indiretamente empreendedores e munícipes.
Dotada de praias urbanizadas, serviços públicos de qualidade, ampla rede de escolas e universidades, Santos também é destaque nacional e internacional na história, na arte e no esporte.

Jardins da Orla de Santos. (Fonte: Turismo Santos).
Tudo isso contribui para que a cidade de Santos, sede do principal complexo portuário do Brasil, com suas estratégias inovadoras, tenha um Índice de Desenvolvimento Humano – IDH de 0,840, e seja considerada uma das melhores cidades para se viver no Brasil.
IMAGEM INICIAL | Vista de um navio de cruzeiro da orla da Ponta da Praia. (Fonte: Prefeitura Municipal de Santos – POM).
╝
REFERÊNCIAS
APS, Autoridade Portuária de Santos. Conheça o Porto de Santos. Santos, SP – Brasil. Disponível em: portodesantos.com.br. Acesso em: 23 Mar. 2025.
PMS, Prefeitura Municipal de Santos. Portal. Santos, SP. Brasil. Disponível em: www.santos.sp.gov.br. Acesso em: 23 Mar. 2025.