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Pinhais, 100 anos de enorme resiliência na indústria de conservas de peixe de Matosinhos
Nunca esquecerei a minha primeira visita a Portugal. Corria o Outono de 2002. Tinha apenas 24 anos e fazia uma viagem de negócios a Matosinhos para conhecer um dos mais importantes e mais antigos sócios da minha família. O meu pai tinha morrido num acidente alguns meses antes, e a responsabilidade da empresa da nossa família era agora minha. Na noite da minha chegada, quis explorar o Porto e apanhei um táxi até ao centro. Eu não sabia, porém, que o antigo bairro era um dos lugares mais perigosos da cidade. Figuras sinistras tentando emboscar e roubar inocentes visitantes não eram o problema. O principal risco para qualquer transeunte era o de ser esmagado por partes de alvenaria que caíam das fachadas. Encontrei ruas inteiras ladeadas por prédios centenários em grave estado de degradação. Eles foram apoiados com suportes improvisados e depois fechados com tábuas. Pedaços de entulho espalhados em alguns lugares. O coração da cidade, outrora tão magnífico, estava praticamente extinto. Havia sido entregue à decadência por décadas. Tristeza e melancolia à beira da Europa. Um legado de Salazar, cujo longo período de controle ditatorial em Portugal isolou e sugou ao seu país.
I will never forget my first visit to Portugal. It was the autumn of 2002. I was just 24 years old and was undertaking a business trip to Matosinhos in order to meet one of my family’s most important and longest standing partners. My father had been killed in an accident a few months previously, and responsibility for our family company now rested with me. On the evening of my arrival, I wanted to explore Porto and took a taxi into the centre. I was, however, unaware that the old quarter was the most dangerous place in the city. Sinister figures seeking to waylay and rob guileless visitors were not the problem. No such characters were to be found anywhere. The key risk for any passer-by was being crushed under parts of masonry falling from façades. I encountered entire streets lined with hundred-year-old buildings that were in a serious state of dilapidation. They had been braced with makeshift supports and then boarded up. Pieces of rubble lay around in places. They had obviously broken off recently. The heart of the city, which had once been so magnificent, had practically died out. It had been given over to decay for decades. Sadness and dreariness on the edge of Europe. A legacy of Salazar, whose long period of dictatorial control in Portugal had isolated his country and sucked it dry.
Logotipo histórico da Pinhais & Cª. Lda. (© Pinhais, 2020).
The historical logo of Pinhais & Cª. Lda. (© Pinhais, 2020).
Estas primeiras impressões deixaram-me de mau humor mas, no início do dia seguinte, parti para Matosinhos, um dos subúrbios do Porto. Matosinhos possui uma população de quase 200.000 habitantes. No início do século XX, foi arquitetado um projeto de implantação de uma zona industrial na zona sul da cidade, logo atrás do segundo maior porto de Portugal. Estes planos foram implementados exatamente da mesma maneira em que foram criados na prancheta. O foco principal na época era a indústria de conservas de sardinha, um setor que estava em forte crescimento. Imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, as ruas retangulares de Matosinhos Sul abrigaram mais de 50 fábricas de peixe. Restam apenas duas até hoje. As ruínas de dezenas de antigas firmas marcaram a minha rota tanto para a direita quanto para a esquerda enquanto eu progredia pelas vias largas e perfeitamente retas. Entretanto vislumbro treliças de telhado desmoronadas e pilhas de escombros pelas aberturas das janelas. Muitas dessas estruturas esqueléticas têm árvores crescendo nessas aberturas e ao longo das bordas das suas fachadas.
De repente, no meio deste cenário apocalíptico e como que alheio ao abandono que o rodeava, surgiu diante de mim a “Conserveira Pinhais”. O prédio da fábrica tinha uma patine, mas não era velho ou degradado. A aparência seria de uma senhora elegante de idade avançada que é capaz de manter a compostura apesar de todas as atribulações da sua vida. Este edifício modestamente ornamental remonta a uma época em que a funcionalidade e a eficiência não eram o cerne de tudo. Também havia espaço para a estética externa que mostrava a qualidade do produto e do processo de produção.
Fui recebido quase assim que saí do carro e fui conduzido através do hall de entrada de azulejos magníficos, subi uma escada larga e curva e entrei num escritório com painéis de madeira. Esperei na sala de reuniões pelo Sr. António Pinhal, o principal proprietário e Administrador Delegado na altura. Depois de alguns minutos, um homem magro de 83 anos entrou. Apesar de ter apenas um metro e meio de altura, ele exalava uma presença imponente e autoritária. Ele guiava os destinos da empresa há 55 anos e continuaria a fazê-lo até à sua morte, sete anos depois.
These initial impressions left me in a sombre mood early the next day as I set out for Matosinhos, one of Porto’s suburbs. Matosinhos boasts a population of almost 200,000. At the start of the 20th century, a scheme was hatched to establish an industrial area in the southern part of the town, right behind Portugal’s second largest port. These plans were implemented in exactly the same way in which they had been created on the drawing board. The main focus at the time was on the canned sardine industry, a sector which was undergoing strong growth. Immediately after the Second World War, the rectangularly arranged streets of Matosinhos Sul were home to more than 50 fish factories. Only two remain today. The ruins of dozens of former firms line my route both to the right and the left as I progress along the wide and perfectly straight thoroughfares. I glimpse collapsed roof trusses and piles of debris through the window openings. Many of these skeletal structures have trees growing out of these apertures and along the edges of their façades.
Suddenly, in the midst of this apocalyptic setting and as if unaffected by the surrounding dereliction, the “Conserveira Pinhais” loomed up before me. Its factory building was patinated, but not shabby or old and not rundown. The appearance was one of an elegant lady of advanced years who is able to keep her composure despite all the tribulations of life. This modestly ornamental building dates back to a time when functionality and efficiency were not the crux of everything. There was a place too for external aesthetics which showcased the quality of the product and of the manufacturing process.
I was greeted almost as soon as I got out of the car and was led through the magnificently tiled entrance hall, up a broad and curved staircase and into a wood-panelled office. I waited in the meeting room for Senhor António Pinhal, the main owner and Managing Director at the time. After a few minutes, a gaunt 83-year old man entered. Despite being barely five feet tall, he exuded an imposing presence and authority. He had already guided the fortunes of the company for 55 years and was to continue doing so until his death seven years later.
Salmoura e corte. (© Pinhais, 2020).
Brine and cutting the sardines. (© Pinhais, 2020).
O Sr. Pinhal não falava inglês e, por isso, conversávamos em francês o melhor que podíamos. A cada minuto, ele anunciava com voz trêmula que a qualidade era a principal preocupação. “La qualité, la qualité, la qualité, Monsieur Glatz!” Ele explicou-me que a qualidade estava por trás da escolha consciente da sua empresa de não utilizar máquinas. Tudo ainda era feito à mão, tal como em 1920. A qualidade era também a razão pela qual a empresa ainda existia, ao contrário das outras 50 fábricas de conservas de sardinha. Estar em Matosinhos, localidade piscatória, permitiu o acesso afortunado ao melhor peixe, com a nossa equipa a ter a oportunidade de escolher o melhor peixe e a fazer o caminho para a fábrica no mais curto espaço de tempo. Todas essas etapas aliadas ao singular método artesanal de produção possibilitaram que a Pinhais mantivesse até hoje este delicado e consagrado processo.
Depois de um passeio pela fábrica e um almoço, fiquei viciado. Perdi o coração pela “NURI” quando vi como este lugar único funciona de acordo com uma tradição imutável de embrulhar latas de sardinha em papel amarelo adornado com um logotipo florido. Mas o que torna a marca tão popular em todo o mundo?
Há quem diga que a Nuri é uma sardinha icónica. Outros são simplesmente levados pela lata amarela, uma visão que eles conhecem desde a infância. Nuri é um alimento que sempre esteve na despensa dos pais ou avós e que de alguma forma faz parte dos utensílios de cozinha. stão familiarizados com a Nuri, a sardinha enlatada produzida à mão em Portugal.
Pessoas de todas as faixas etárias e origens sociais abraçam o seu sabor, que encontra um lugar nas prateleiras de trabalhadores da construção civil e diretores de museu. Em Curaçao, o desembarque anual de um contentor de latas de Nuri é até motivo de um festival público, incluindo anúncios de rádio e eventos encenados por toda a ilha.
Senhor Pinhal spoke no English, and so we conversed in French as best we could. Every few minutes, he announced in a tremulous voice that quality was the primary concern. “La qualité, la qualité, la qualité, Monsieur Glatz!” He explained to me that quality was behind his firm’s conscious choice to do without modern machines. Everything was still done by hand, just as in 1920. Quality was also the reason why the company was still in existence, unlike the other 50 canned sardine factories. Being in Matosinhos, a fishing location, that allowed fortunate access to the best fish, having our team choosing the best fish and making way to the factory in the smallest time. All of these steps combined with the unique artisanal method of production made possible for Pinhais to maintain until our days this delicate and time-honoured process.
After a tour of the factory and a spot of lunch, I was hooked. I lost my heart to “NURI” once I had seen how this unique place operates in accordance with an immutable tradition to wrap tins of sardines in yellow paper adorned with a flowery logotype. But what makes the brand so popular all over the world?
Some say that Nuri is an iconic product. Others are simply taken by the yellow tin, a sight which they have known since childhood. Nuri is a foodstuff which was always in their parents’ or grandparents’ larder and which somehow is part of the fixtures and fittings of the kitchen. Virtually everyone in Austria is familiar with Nuri, the hand-produced tinned sardine from Portugal.
People of all age groups and social origins have embraced its taste. It finds a place on the storage shelves of construction workers and museum directors alike. In Curaçao, the annual landing of a container of tins of Nuri is even the cause for a public festival including radio announcements and events staged all over the island.
Empapelamento manual de cada lata Nuri. (© Pinhais, 2020).
Hand wrapping every single Nuri tin. (© Pinhais, 2020).
Certas pessoas encaram a Nuri como um estilo de vida. As suas origens portuguesas são claras desde a própria embalagem. A parte superior da lata apresenta um design ricamente decorativo num tom amigável de amarelo que permanece quase inalterado há 100 anos. Este sorri ao consumidor como os azulejos que enfeitam as fachadas dos edifícios do Porto. Desperta uma saudade, um anseio e uma saudade de uma época em que tudo era mais fácil, mais lento e talvez melhor. Cada lata de Nuri preserva um pedaço do passado e encerra uma tradição viva. Um processo de produção que teimosamente se recusou a mudar nos últimos 100 anos. A mesma fábrica, as mesmas mesas de mármore, a mesma receita todos os dias. Um bastião de calma num mundo de alimentos em constante evolução. A orgulhosa contraparte da inovação – sempre idem.
A minha família está associada à marca Nuri, à Conserveira Pinhais e aos Pinhais há três gerações. Estas muitas décadas de estreita colaboração e parceria permitiram-nos também resgatar a empresa de Matosinhos do seu iminente desaparecimento e dar continuidade à história da fábrica. Fizemos as nossas comemorações em família na altura do centenário em 2020 e, um ano depois, inaugurámos o nosso “Museu-Vivo”, que permite aos visitantes conhecer o chão de fábrica e vivenciar a produção em primeira mão.
Tivemos um crescimento sustentável, focado na valorização do trabalho realizado, chegando a 4 milhões de latas produzidas neste último ano. Tal como no início, mais de 95% do que produzimos destina-se aos mercados internacionais, chegando a mais de 60 países em todo o mundo.
Muita coisa aconteceu desde a minha primeira visita à fábrica, há vinte anos. O centro do Porto está quase completamente renovado e está repleto de turistas, lojas e pequenos cafés. As ruínas de Matosinhos Sul deram lugar a parques ou foram transformadas em edifícios residenciais e hotéis. Este pequeno subúrbio, que tem a sua própria praia, tornou-se um dos lugares mais procurados para se viver na região. A fábrica também foi totalmente remodelada. Abriu as portas a visitantes internacionais, que agora podem observar como a equipa – composta por pouco menos de 100 senhoras e um número significativamente menor de homens – trabalha todos os dias para preparar as melhores sardinhas do mundo.
Certain individuals view Nuri as a lifestyle. Its Portuguese origins are clear from the very packaging. The top of the tin features a richly decorative design in a friendly hue of yellow which has been almost unchanged for 100 years. This smiles out at the consumer like the azulejos which adorn the frontages of the buildings in Porto. It awakens a saudade, a yearning and a sense of homesickness for an era in which everything was easier, slower and perhaps better. Every tin of Nuri preserves a piece of the past and encapsulates a living tradition. A production process which has stubbornly refused to change for 100 years. The same factory, the same marble tables, the same recipe day in and day out. A bastion of calm in a world of foodstuffs which is always evolving. The proud counterpart to innovation – semper idem.
My family has been associated with the Nuri brand, with the Conserveira Pinhais and with the Pinhais for three generations. These many decades of close collaboration and partnership have also enabled us to rescue the company in Matosinhos from its impending demise and to continue the history of the factory. We had our family celebrations for the centenary in 2020 and just one year after, we opened of our “Live Museum”, which allows visitors to tour the shop floor and experience production at first hand.
We had a sustainable growth, focused on valuing the work being done, reaching the 4 million tins produced this last year. Like it was in the very beginning, more than 95% of what we produce is headed for international markets, reaching more than 60 countries worldwide.
Much has happened since my first visit to the factory twenty years ago. The centre of Porto has been almost completely renovated and is full of tourists, shops and small cafés. The ruins of Matosinhos Sul have given way to parks or else have been redeveloped into residential buildings and hotels. This small suburb, which has its own beach, has blossomed into one of the most popular places to live in the region. The factory too has been fully refurbished. It has opened up its doors to international visitors, who are now able to observe how the staff – comprising just fewer than 100 ladies and a significantly smaller number of men – work every day to prepare the world’s best sardines.
O foyer único da Pinhais, parte integrante da visita ao Museu. (© Pinhais, 2020; Fonte: https://www.conservaspinhais.com/visitar-pinhais/).
The unique Pinhais foyer, part of the museum visit. (© Pinhais, 2020; Source: https://www.conservaspinhais.com/en/visit-pinhais/).
A aposta no turismo, não só industrial, mas também cultural, histórico e gastronómico, permite-nos partilhar com tanto orgulho o legado da nossa indústria com visitantes de todos os continentes, de diferentes idades e sobretudo contribuir ativamente para a preservação de um património tão importante e relevante ma história de Portugal e Matosinhos. Mas nem tudo teria sido possível sem a nossa família. Cada trabalhador, as suas famílias e a comunidade de Matosinhos. Todos eles nos permitiram tornar-nos únicos e, preservando obstinadamente o nosso processo produtivo e a nossa longa história, tornámo-nos num património cultural mundial vivo que exporta algumas das melhores iguarias que temos para oferecer a vários países do globo.
Focusing on tourism, not only industrial, but also cultural, historical and gastronomic, allows us to so proudly share the legacy of our industry with visitor from all continents, from different ages and specially to actively contribute to the preservation of a very important and relevant history of Portugal and Matosinhos. But all could not have been possible without our family. Every single worker, their families and the Matosinhos community. All of them have allowed us to become unique and by stubbornly preserving our production process and our long history, we have become a living world cultural heritage that exports some of the best delicacies that we have to offer to many countries around the globe.
IMAGEM INICIAL | Factory Pinhais em 1935. (© Pinhais, 1935).
HEAD IMAGE | Factory Pinhais in 1935. (© Pinhais, 1935).