No Porto a mesa é a forma mais respeitosa de mostrar agrado por alguém.
O convívio á mesa é desde sempre a melhor forma de estar e dialogar, no Porto gostamos de estar á mesa entre um bom prato de comida quente, um bom vinho e uma boa conversa na companhia de amigos.
Não consigo falar da gastronomia do Porto sem que um arrepio me atravesse a “espinhela”, pois sinto pela cidade berço que foi meu, um orgulho enorme e um amor inabalável; “comer bem é no Porto“ dizem alguns que não o sendo quando cá vêm se impressionam pela forma como dispomos na mesa o melhor que temos, e, que é de facto muito bom; sempre com “o coração ao pé da boca” mas também com um coração grande de dádiva e de partilha.
Tripas à moda do Porto
Tripeiro é linguisticamente aquele que gosta de tripas mas é também aquele que faz das tripas coração em todos os momentos da História em que foi precisa a intervenção destas gentes, como foi quando da conquista de Lisboa a necessidade de encher as embarcações com mantimentos ficando as miudezas ou na conquista de Ceuta a mando do Dom Henrique se encheram as naus com o melhor que havia ficando uma vez mais o que sobrava. A receita das tripas não teve de facto origem em nenhum destes episódios pois a receita já existia antes destas epopéias mas demonstram bem a capacidade de entrega das gentes desta cidade.
A receita das tripas é evolutiva, começando por ser um estufado de “sola” de vitela com um pedaço de pão que engrossava o caldo, as conquistas na Índia e a descoberta do Brasil veio adicionar as especiarias em maior quantidade e o feijão tornando-a na receita que nós hoje a conhecemos. A receita das tripas é evolutiva, começando por ser um estufado de “sola” de vitela com um pedaço de pão que engrossava o caldo, as conquistas na Índia e a descoberta do Brasil veio adicionar as especiarias em maior quantidade e o feijão tornando-a na receita que nós hoje a conhecemos:
Tripeiro, nado e criado nessa cidade granítica, que muitos a julgam fria, mas que me aquece como mais nenhuma outra cidade mundo fora, deixo aqui uma receita de tripas mas não á moda do Porto, essas tem que as comer aqui nesta urbe que se ergue junto ao Douro.
Pessoa, o poeta, um dos muitos e talvez dos melhores, as comeu-as frias, e a tripas á moda do Porto não é prato que se sirva frio, no Porto vem e fervilhar para a mesa, o feijão manteiga é untuoso e o aroma dos cominhos exala e enche a sala começando por aquecer o aroma, enchendo a alma.
Tal como o poeta eu gosto delas quentes, com aquela mão de vaca que lhe dá gelatina e as faz grossas e que no meio do estomago da vitela cortada em tiras é um encontro celestial, ou comer não fosse um acto divino.
Ninguém come dobrada fria, como ninguém se recorda de um grande repasto comido na solidão de uma mesa.
Fernando Pessoa nunca teria reparado na quentura da dobrada se estivesse acompanhado por alguém que lhe aquecesse a alma, poderiam estar frias mas o amor tudo aquece e tudo faz parecer rosa o que por vezes é negro.
“Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?”
As recordações deste triste episódio, trouxe ao poeta o calor da infância a vontade de voltar ao jardim que era seu e que corria como se não tivesse fim.
Não deixo aqui a receita das tripas á moda do Porto, pois essa todas as pessoas conhecem, está por todo lado, mas não se esqueça que se devem comer quentes bem quentes e sempre em boa companhia.
Fica aqui a receita de uma dobrada em fricassé, simples de fazer, talvez um pouco demorada, mas quem cozinha dá amor não serviço e portanto dedica tempo pois é a forma mais preciosa que temos para dar, que recebemos gratuitamente, que por vezes vendemos mas quando a damos é um acto de amor.
Depois de bem lavadas, as tripas, corte-as em tiras grossas, coza-as em agua temperada com sal grosso, folha de louro, cravinho da india, pés de sala até ficarem bem tenras.
Leve ao lume azeite do bom, junte dente de alho esmagado e cebola picada, deixe alourar, acrescente salpicão cortado em cubos, deixe refogar junte quanto baste de colorau acrescente-lhe as tripas cozidas, envolva tudo bem e deixe estufar um pouco, junte água quente, sal e pimenta preta, atreva-se a um pouco de malegueta esmagada, por fim deixe lentamente tomar o gosto. Batas gemas com sumo de limão, acrescente um pouco do caldo quente ao sumo de limão e gemas e por fim fora do lume, junte tudo envolva com carinho leve ao lume mas não deixe ferver para não talhar. Salpique com salsa picada para dar cor. Sirva com arroz branco.
Pode-as comer em Lisboa em qualquer cidade do portuguesa ou do mundo mas sirva-as quentes, coma-as em companhia e depois, então, passeie na rua, sem queixas, visite um jardim recordando, não o passado, mas celebrando o presente bem comido que o mesmo quer dizer bem vivido.
Fica aqui o poema na integra …
Dobrada á moda do Porto
Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.
Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.
Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo …
(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).
Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.
Fernando Pessoa
Head image: Porto. Uma imagem da cidade.