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Viana do Castelo: O porto e a frente urbana nos últimos 150 anos
O porto de Viana do Castelo é uma peça nuclear no desenvolvimento da cidade e da região que lhe está mais próxima. Na história da cidade, todos os períodos de maior prosperidade e crescimento económico estão associados ao comércio portuário tanto de bens com origem nos territórios de proximidade, como de produtos saídos, para exportação, da manufatura industrial adjacente. Houve períodos em que o sector pesqueiro também atingiu grande importância sobretudo no tempo da pesca do bacalhau nos mares Terra Nova (Canadá). Viana do Castelo foi porto de abrigo de importante frota bacalhoeira, e no tratamento, secagem, salgadura e expedição do pescado para o resto do país e estrangeiro e, também, na construção de novas embarcações para a sua faina. Na segunda metade do século XX, a partir de 1946, Viana do Castelo viu reforçada a importância do seu porto com a introdução da valência da construção e reparação naval mais pesada com a entrada em operação de novos estaleiros que se fixaram na margem norte, junto à cidade. Esta valência industrial tem ganho novo ímpeto nos últimos anos, após a concessão a empresa privada e depois de período de prolongada crise de novas construções ou reparações navais. Este facto produz forte impacto no tecido socio económico da cidade e motiva o surgimento de novas empresas fornecedoras de equipamentos, manufatura ou serviços.
Até ao advento de vias de circulação terrestre o que começou a acontecer de forma estruturada apenas há cerca de 150 anos atrás, o principal tráfico portuário na cidade era de transbordo fluvio- marítimo. Havia barcaças que subiam ao longo do rio Lima até Ponte da Barca, cerca de 25 quilómetros a montante da cidade, carregando mercadorias para o interior e trazendo, rio Lima abaixo, aquelas que interessavam ao resto do país ou para outros destinos europeus. O transbordo da carga entre as barcaças fluviais e as embarcações de cabotagem a fazerem serviço em mar aberto ao longo da costa atlântica, Ibérica e europeia, ocorria nos cais da margem norte junto à cidade. Também se faziam com as embarcações abraçadas fundeadas em frente à cidade. Os cais de acostagem eram a margem fluvial do núcleo urbano mais tradicional de Viana do Castelo e havia várias rampas a permitirem a passagem a pé de passageiros e tripulantes para a cabeça dos cais sempre que a maré estivesse baixa. Pormenor hoje por vezes esquecido é saber que pelo porto de Viana do Castelo saíam, para o mercado inglês, em seiscentos e setecentos, a melhor carne de bovino da província do Minho interior, o famoso “beef” que ganhou boa fama e tradição gastronómica à mesa dos ingleses.
Em meados do século XIX toda a frente urbana da cidade estava bordejada por cais de acostagem em alvenaria de pedra de granito entre o sítio da Argaçosa, cerca de mil metros a montante da ponte metálica rodoferroviária até à fortaleza de Santiago da Barra, junto à foz do rio Lima. Todo esse comprimento de cais, cerca de dois mil e quinhentos metros de extensão, deu lugar a alguma especialização: a nascente, imediatamente a montante e a jusante da ponte metálica rodoferroviária, os cais e fundeadouros para o serviço a embarcações que faziam o trânsito fluvial até Ponte da Barca; ao centro, perto da zona hoje ocupada pela praça da Liberdade, os cais para carga e descarga em dias de feira e mais para poente, docas protegidas para estacionamento de embarcações ou operações de carga e descarga mais demoradas e que faziam a cabotagem ao longo da costa portuguesa e doutros destinos europeus. Entre estes dois últimos setores chegou a haver, até inícios do século XX, um estaleiro de reparação e construção naval, para embarcações com casco de madeira e mastreação para navegação vela, em terrenos marginais perto do sítio onde hoje está o edifício do Coliseu referido mais à frente.
Importa aqui esclarecer que a cidade se desenvolveu numa geografia que facilitou o emprego dalgumas ideias claras e simples, no desenho geral de implantação e adaptação inicial ao lugar. Desde logo, a presença do rio Lima a correr do lado Sul, mas tendo perto da margem, a cerca de 400 metros, o monte de Sta. Luzia. Isto obrigou, mais cedo do que tarde, a que a malha urbana se estendesse para nascente paralelamente à margem fluvial e, para o lado poente, se alongasse à vista da margem atlântica. Neste último caso, deixando sempre a salvo os férteis terrenos agrícolas que, com o tempo, nos anos setenta do século passado, ganharam o estatuto de área de reserva agrícola. Como o terreno base onde assenta a cidade é de topografia suave e quase não apresenta acidentes topográficos de monta, o núcleo inicial instalou-se no sopé do monte, frente ao rio, virado ao percurso solar diurno e protegido pelo monte de Sta. Luzia, dos ventos frios do quadrante Norte.
Mais tarde, a cidade protegeu-se com muralha medieval de mancha arredondada e muro alto como era uso na época. No interior da muralha o núcleo urbano adotou uma malha ortogonal, tal como um acampamento romano, com os “cardus” e “decumanus” chegando às portas de acesso, que se estabeleceram segundo os quatro principais pontos cardeais. Logo que a oportunidade surgiu, por alturas do domínio de Castela, que se traduziu numa relativa pacificação em quase toda a Península Ibérica, derrubou-se boa parte da muralha medieval e a pedra resultante da demolição, aplicada no aumento do comprimento dos muros/cais portuários ao longo da margem Norte, mesmo em frente à cidade. A morfologia ortogonal estendeu-se para o exterior dos muros, tanto para poente como para nascente, seguindo de forma geral as mesmas direções que já trazia do interior da muralha demolida. Viana do Castelo manteve uma estrutura regular, com ruas “direitas”, paralelas ou perpendiculares à linha da margem fluvial o que favorece uma boa abertura visual ao rio e a tudo o que se passa nas suas margens. A presença do rio e das atividades ao longo da sua margem urbana tiveram sempre impacto e influência direta no desenvolvimento da cidade, incluindo no seu desenho e morfologia urbana.
Levantamento Hidrográfico da barra e porto de Viana do Castelo. (Source: Direcção Geral da Marinha, 1933).
A construção da ponte rodoferroviária em 1875 a ligar ambas as margens do rio, promoveu a existência de fundeadouro para as embarcações maiores junto ao cabedelo Sul que, no século XIX, chegou a ter fortes cabeços de amarração na margem ao longo da estacaria de proteção do próprio cabedelo de areia que ali existia. O ponto de amarração do novo acesso rodo ferroviário na margem Norte estabeleceu uma espécie de nova fronteira do lado nascente da cidade que beneficiou mais o movimento de pessoas e mercadorias em trânsito do que o movimento do porto comercial marginal à cidade. Um pouco mais tarde, mas ainda na primeira metade do século XX, nasceram os novos estaleiros de construção naval numa altura em que ainda era muito robusta a presença da frota bacalhoeira de Viana do Castelo no conjunto da chamada frota branca – alusão às velas e cascos de madeira pintados de branco – tudo contribuindo para uma presença muito forte do porto e das suas diferentes valências, na atividade económica e crescimento da cidade.
Ponte rodoferroviaria, monumento nacional com a designação de “Ponte Gustavo Eifell”. (© Vasco Cameira).
A partir de 1976, com o início da construção do novo porto, a plataforma comercial passou para a margem Sul, a frente ribeirinha junto à cidade beneficiou com um aterro marginal com cerca de 100 metros de largura e estendendo-se desde a amarração da ponte metálica rodo ferroviária até às imediações dos estaleiros navais onde se aproveitou no desenho geral das obras, para estabelecer uma bacia de acesso aos estaleiros protegida pelo novo molhe norte. Esta bacia garante também o acesso à antiga doca comercial do lado da cidade e o acesso ao novo porto de pesca entretanto construído junto ao edifício da Lota (2009). Com esta nova disposição das três principais valências portuárias – comercial, construção naval e pesca – o novo porto comercial, na margem Sul, deixou de ter ramal ferroviário e é servido à porta apenas por acesso rodoviário.
Painel de azulejos reproduzindo o esboço geral do plano de intervenção da autoria do arquitecto Fernando Távora. (© Vasco Cameira, 2022).
A construção da nova plataforma comercial na margem Sul motivou, por razões de ordem técnica, o surgimento de novas terras de empréstimo do lado da cidade que começam perto da amarração Norte da ponte rodoferroviária até ao enfiamento da fortaleza de Santiago da Barra perto da foz do rio Lima. A principal justificação foi a de estreitar e regularizar o curso do leito do rio por forma a acelerar o trânsito das águas entre marés e assim prevenir o depósito de inertes nas áreas molhadas portuárias. O assoreamento foi e tem sido um problema permanente da exploração portuária em Viana do Castelo, não apenas no desenho e estabelecimento das respetivas obras marítimas, como também, no constante controlo e monitorização da deposição de inertes nos canais de acesso aos cais a exigirem constantes intervenções sempre que deixa de se verificar o padrão técnico e altura de fundos a que a autoridade portuária está obrigada garantir no serviço aos seus cais e bacias de manobra. O resultado do estreitamento do rio exatamente em frente ao núcleo histórico, ocasionou que um dos troços do novo cais comercial diste apenas 150 metros da margem urbana. Ganhou-se em passeio e espaço público, mas perdeu-se em privacidade portuária o que se traduz pela presença duma vista industrial, de silos, pavilhões e equipamentos de movimentação de cargas no primeiro plano para quem esteja no núcleo mais antigo e tradicional da cidade e olhe para Sul. Justamente onde está o rio, a luz, a energia e para onde a ligeira pendente urbana convida o nosso olhar a dirigir-se.
O tratamento que foi dado pelas entidades públicas a este novo espaço urbano seguiu a tradição das cidades com importantes frentes ribeirinhas independentemente de ter, como tem, instalações portuárias na margem em frente. O Município local promoveu a construção de nova alameda rodoviária paralela ao rio e à que existia anteriormente e que se manteve no acesso à frente construída tradicional, ampliou o espaço de passeio público junto à berma fluvial. No eixo de entroncamento da principal avenida da cidade, fez construir uma praça – a praça da Liberdade – ladeada por edifícios de uso público.
Vista do porto comercial tirada da margem Norte, junto ao edifício da Biblioteca Municipal desenhado pelo arquitecto Álvaro Siza Vieira. (© Vasco Cameira, 2022).
O plano de intervenção desta parte nova foi desenhado pelo arquitecto Fernando Távora (ver figura anterior, mostrando o painel de azulejos com o esboço geral do plano), que se encarregou também do desenho dos edifícios que ladeiam a praça da Liberdade. Para o lado nascente, nasceu o edifício da nova Biblioteca Municipal desenhado pelo arquitecto Álvaro Siza Vieira e, para poente, o edifício do Coliseu desenhado pelo arquitecto Eduardo Souto de Moura, ambos galardoados pelo prémio Pritzker de arquitectura, respectivamente em 1992 o primeiro, e em 2011, o segundo. O que se sabe e foi explicado em diversas intervenções publicas, é que os três arquitectos se puseram de acordo em relação a alguns princípios que entenderam básicos para o desenvolvimento dos seus projetos. Talvez seja de aqui destacar dois: a mesma altura de cércea para todos os edifícios e a transparência visual aos transeuntes para o rio Lima para quem circule nos passeios da cidade ou na nova alameda ribeirinha. A forma como cada um dos três arquitectos garantiu este último aspeto nas edificações que concebeu constitui um dos maiores motivos de interesse de todo o conjunto edificado. Pessoalmente, gostaria de destacar a subtileza e elegância como estão garantidas, para quem circula no interior da Biblioteca Municipal, as sucessivas vistas panorâmicas para o rio Lima e a ponte rodoferroviária assim como também para a frente urbana ribeirinha de proximidade. O edifício “evoca um barco fundeado no rio e pela brancura do betão e a horizontalidade afirmada dos corpos e a sua elegância, esta obra continua a tradição do Movimento Moderno” [1].
Esta zona dos novos aterros resultantes da construção, em 1976, do porto comercial na margem Sul, beneficia da proximidade das antigas docas comerciais onde se instalou o navio museu “Gil Eannes”. O Coliseu, para garantir a cércea máxima estabelecida pelo plano de intervenção urbanística e o programa de uso do edifício, teve de abrir uma caixa e enterrar parte dos espaços úteis interiores apoiando todas as tubagens e maquinaria técnica e a cobertura numa espécie de mesa apoiada apenas nos quatro cantos do edifício. Este conceito permitiu ao arquitecto Souto de Moura garantir uma vista geral a quase toda a volta do edifício por amplos planos de vidro desde o chão de circulação exterior até à prateleira superior onde estão apoiadas as tubagens técnicas e maquinaria de climatização inspiradas, ao que se lhe ouviu, por semelhante propósito nas canalizações e bocas de ventilação do navio museu Gil Eanes que está amarrado, muito próximo, na antiga doca comercial de Viana do Castelo. O arquitecto Fernando Távora garantiu a abertura visual ao rio com o modo de implantação dos dois edifícios que ladeiam a praça da Liberdade onde o escultor José Rodrigues concebeu um monumento de bronze que sendo alusivo à recente implantação, em 1974, do regime democrático e liberal simbolizado pela corrente metálica quebrada não deixa, ele mesmo, no seu conjunto, de parecer uma espécie de pórtico para o rio, totalmente alinhado com a avenida dos Combatentes, a estação central dos caminhos de ferro e o monte de Santa Luzia.
Vista geral do porto comercial e do casco histórico de Viana do Castelo. (© Vasco Cameira, 2022).
IMAGEM INICIAL | Fotografia aérea do porto e da cidade de Viana do Castelo. (© APDL – Administração dos Portos do Douro, Leixões e Viana do Castelo, 2021).
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Nota
[1] In: Construir em betão 2008/09, pág.61 e sgs.