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O Poeta, o Cronista e o Mar
Maior e mais importante do Brasil, o Porto de Santos sempre exerceu um grande fascínio sobre poetas e escritores, a partir de seus espaços carregados de simbolismo, onde o tempo se confunde entre chegadas e partidas, reencontros e saudades; onde a movimentação no cais torna-se um espelho da própria condição humana: instável, transitória.
Junto ao porto, o poeta e o cronista exercem a capacidade de sentir profundamente e, ao mesmo tempo, de observar e narrar o mundo ao seu redor. O mar, em sua vastidão, acolhe ambos, revelando-se como um eterno inspirador de versos e crônicas.
O real e o imaginário, o concreto e o intangível se fundem na poética portuária. É o som das gaivotas misturado ao apito dos navios, o cheiro da maresia, o vai-e-vem dos trabalhadores e suas lutas. É a imensa infraestrutura operacional colocada à disposição do comércio marítimo nacional e internacional. São as conversas em várias línguas, revelando histórias e hábitos culturais diferentes.

Porto de Santos: a imensidão dos espaços carregados de simbolismos. (Fonte: Autoridade Portuária de Santos – APS).
Ao final do dia, quando o burburinho diminui e a noite se aproxima, vem o encanto das luzes refletidas na água. Vem o sussurro do mar, o som das ondas quebrando contra as pilastras do cais. E o fascínio toma conta de poetas e escritores.
Se o poeta mergulha nas águas profundas do sentir, o cronista caminha à beira, recolhendo as pegadas antes que o mar as apague. Um, busca o invisível, o outro, o visível. Um interroga o silêncio, o outro, a palavra cotidiana. E o mar, eterno e mutável, serve de palco para essa dualidade de percepções, revelando as nuances entre a sensibilidade lírica e a observação pragmática.

Ao entardecer, o pôr do sol fascinando poetas e cronistas. (Fonte: willbrasil21).
Revisitando escritos de dois grandes representantes da poesia e da prosa – o “poeta do mar” Vicente de Carvalho, patrono da Cadeira 25 da Academia Santista de Letras, e o cronista Rubem Braga – veremos como se faz esse duplo caminhar.
Na obra poética de Vicente de Carvalho, o mar é abordado com uma profunda emotividade e simbolismo. É frequentemente descrito como um elemento apaixonado e sofredor, com “músculos e nervos em cada onda” e uma “voz apaixonada e triste em cada rugido”. Nos versos de “Palavras ao Mar” (em Poemas e Canções, 1917), ele chega a ser retratado como um “tigre”, que é acalmado pela brisa da terra e eriçado pelo vento do largo, refletindo a dualidade entre calma e turbulência. O poeta também explora a relação do mar com a essência humana, destacando uma conexão profunda e emocional com a natureza.
Vejamos esse trecho:
Mar, belo mar selvagem
Das nossas praias solitárias! Tigre
A que as brisas da terra o sono embalam, A que o vento do largo erriça o pelo!
Junto da espuma com que as praias bordas, Pelo marulho acalentada, à sombra
Das palmeiras que arfando se debruçam Na beirada das ondas — a minha alma Abriu-se para a vida como se abre
A flor da murta para o sol do estio.
Já na crônica “Homem no Mar”, publicada pela primeira vez no jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, em janeiro de 1953, Rubem Braga retrata a cena de um homem nadando em um mar deserto, observado por um narrador que projeta nessa imagem reflexões sobre solidão, resiliência humana e beleza. O narrador enfatiza a solidariedade imaginária com o nadador, sugerindo uma identificação com sua jornada individual. Destaca, ainda, a admiração pelo esforço solitário e a nobreza calma do gesto, mesmo sem um propósito aparente.
De minha varanda vejo, entre árvores e telhados, o mar. Não há ninguém na praia, que resplende ao sol. O vento é nordeste, e vai tangendo, aqui e ali, no belo azul das águas, pequenas espumas que marcham alguns segundos e morrem, como bichos alegres e humildes; perto da terra a onda é verde.
Mas percebo um movimento em um ponto do mar; é um homem nadando. Ele nada a uma certa distância da praia, em braçadas pausadas e fortes; nada a favor das águas e do vento, e as pequenas espumas que nascem e somem parecem ir mais depressa do que ele…
… Ele usa os músculos com uma calma energia; avança. Certamente não suspeita que um desconhecido o vê e o admira porque ele está nadando em uma praia deserta. Não sei de onde vem essa admiração, mas encontro nesse homem uma nobreza calma, sinto-me solidário com ele, acompanho o seu esforço solitário como se ele estivesse cumprindo uma bela missão…
Transcendendo a descrição factual, a crônica de Braga funciona como metáfora da condição humana, onde a luta contra as ondas simboliza a persistência diante das adversidades da vida. Seguindo outros cronistas iremos encontrar também aquele que, parado junto ao cais, onde o mar se detém, retrata o espaço de labuta, de contradições sociais e históricas, bem como cenas de crueldade, por meio de personagens marginais, presentes no cotidiano de muitas áreas portuárias.

A intensa labuta diária, entre histórias e hábitos diversos. (Fontes: Portos & Navios e LexLatin).
Sob o olhar do cronista, portanto, o cais de uma cidade não é apenas um espaço físico, mas um lugar simbólico onde diferentes realidades e temporalidades se encontram. É ali que o passado se manifesta nas estruturas desgastadas pelo tempo. É ali, o presente dos trabalhadores e dos transeuntes. É ali que o futuro se anuncia no horizonte distante, para onde apontam os olhares sonhadores dos poetas…

O cenário que permeia as chegadas e partidas, e inspira poetas e cronistas. (Fonte: TOP5TOUR).
IMAGEM INICIAL | Caminhada pela praia de Santos, próximo ao jardim. (Fonte: THMais).