Projeto Porto Novo: requalificação como estratégia de preservação da memória portuária da cidade do Recife

30 Luglio, 2014

Recife foi fundada em 1537 e, como diversas cidades portuárias brasileiras, nasceu e se desenvolveu em torno do seu porto. Surgiu “como consequência direta de sua atividade específica, com sua vida e seu futuro indissoluvelmente ligados à vida do porto” (Castro, 1948, p.32). 

No início do século XX, o porto passou por ampliações resultantes da necessidade de modernização de sua estrutura portuária. A cidade acompanhou esse processo com ações conjuntas de renovação como a reforma urbana iniciada em 1910. Foram melhoradas as condições operacionais do porto e a estrutura urbana do Bairro do Recife, ilha original da formação da cidade, conferindo ao bairro os aspectos urbanísticos e imagéticos que permanecem até hoje.

Nas últimas décadas, em função das mudanças na logística portuária, o Porto do Recife precisou adaptar-se às novas necessidades de transporte marítimo, tornando imprescindível a construção de um novo porto. Para atender a esta demanda, o estado de Pernambuco optou pela construção do Porto de Suape, em Ipojuca, a aproximadamente 50Km de Recife. Consequentemente, as atividades do antigo porto foram reduzidas, deixando um legado de áreas de frente marítima ociosas com usos passíveis de desativação e requalificação.

 

Caracterização da área de intervenção

A área portuária alvo da intervenção compreende fragmentos dos Bairros do Recife e São José. As faixas de terra sobre as quais se situam os equipamentos correspondem aos aterros dos séculos XVIII e XIX do processo de expansão e reforma do porto, compondo os atuais cais do Recife e de Santa Rita, respectivamente. Ambos os casos são terrenos em frente d’água, voltados para o delta formado pelas bacias dos rios Capibaribe, Beberibe, Pina e Jordão nas suas desembocaduras no oceano Atlântico, que formam um braço de mar protegido das ondas pelo molhe artificial construído sobre a barreira original de arrecifes.

A área correspondente a um trecho de 1,5 km de extensão e abrange 8 armazéns e um edifício vertical. Trata-se dos armazéns de número 10, 11, 12, 13 e 14, localizados no Bairro do Recife; e dos armazéns 15, 16, 17 e o edifício Pescado Silveira, ambos situados em São José.

 

Recife_01_Delimitação_área

Delimitação da área de intervenção.

 

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Vista general da intervenção.

 

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Vista general da intervenção.

Caracterização das intervenções e dos modelos de ocupação

Apesar da área de intervenção não ser tombada, foi proposta como diretriz geral, a conservação das estruturas arquitetônicas portuárias pré-existentes. Caso necessitem ser removidas em sua totalidade devem dar lugar a novos equipamentos que se proponham a dialogar com o contexto pré-existente, mas apresentem características plásticas que denotem com clareza a sua contemporaneidade.

Considerando essa diretriz e os padrões tipológicos e morfológicos das edificações na área de intervenção, três modelos diferentes de ocupação foram estabelecidos:

MODELO 1 – Ocupação por inserção de novos elementos em estrutura pré-existentes com manutenção da leitura espacial e volumétrica de “galpão”, mas com possibilidade de alterações internas  e das fachadas – referentes aos armazéns 10, 11, 12 e 13 e 16 e 17

 

Compreende a transformação dos galpões em edifícios com até dois pisos úteis, com arranjos flexíveis que comportem variações, como inserção de mezaninos ou espaços com pés-direitos duplos (mesmo parágrafo)Considera-se a possibilidade de substituição dos fechamentos em alvenaria e avanços volumétricos para além da linha da fachada, como balcões em balanço ou decks avarandados, contanto que seja mantida a estrutura original. (mesmo parágrafo)

A leitura de galpão é garantida externamente com a permanência da volumetria geral do edifício e internamente com a manutenção do pé direito único nas suas extremidades, funcionando como grandes entradas dos equipamentos e permitindo a leitura espacial original dos armazéns.

Nos armazéns 10, 11, 12 e 13, a distribuição do programa se dá da seguinte forma: no térreo, bares, restaurantes, lojas e equipamentos de lazer em geral; nos pavimentos superiores, escritórios. Nos armazéns 16 e 17, o programa distribui-se da seguinte maneira: no térreo, lojas, área livre, apoio/serviços do centro de convenções e estacionamento; nos pavimentos superiores, centro de convenções.

 

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Modelo de ocupação 1.

 

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Vista externa do armazém 13.

 

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Vista interna do armazém 13.

 

MODELO 2 – Ocupação apenas do interior dos edifícios, com manutenção da volumetria  e restauração  das fachadas originais – referentes ao armazém 14 e ao edifício do Pescado Silveira

 

Considerando a particularidade do armazém 14 e as condições de conservação dos seus elementos de arquitetura eclética, propõe-se o restauro do envelope do edifício e utilização do espaço interior com ganho de área proporcionado pela multiplicação de pisos. Neste caso, não será permitida a descaracterização das fachadas e nem da volumetria original do edifício. Também se faz necessária a manutenção do pé direito único na entrada principal do equipamento, para garantir a leitura espacial do galpão. Para essa edificação propõe-se o uso de lazer e cultura, visto que o galpão já abriga o Teatro Armazém.

O conjunto formado pelo edifício do Pescado Silveira [1] e o armazém 15 demanda uma abordagem especial que será tratada no modelo seguinte.

 

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Vista externa do armazém 14.

 

MODELO 3 – Ocupação por substituição de estruturas – referente à demolição do armazém 15 e implantação de novas estruturas edilícias de natureza distinta da original

Considera-se que o edifício do Pescado Silveira, da mesma maneira que o armazém 14, apresenta características bem definidas de um pensamento arquitetônico típico de uma determinada época. Merece, portanto, ser valorizado, devendo ser referencial para as novas intervenções propostas no seu entorno. Sendo assim, as novas ocupações devem ser balizadas pelas suas características, abrindo-se mão da conservação do armazém 15 – que sendo uma repetição do mesmo modelo dos anteriores, não acarretaria em perda da memória do seu padrão arquitetônico.

Propõe-se, portanto, a substituição do armazém 15 por um conjunto de edifícios que remetam ao padrão de ocupação do cais antecipado pelo Pescado Silveira (torre sobre pódio [2]), considerando-se, porém, a relevância de se manter a permeabilidade visual e física no pavimento térreo.

A distribuição do programa é a seguinte: na barra horizontal, administração e apoio do hotel e da marina e o estacionamento; no terraço (cobertura da barra horizontal), a área de lazer do hotel (piscina, bar, restaurante, etc.); nas torres, os apartamentos do hotel.

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Vista do conjunto formado pelo edifício Pescado Silveira.

Conclusão

A importância dos centros de cidades vem ressurgindo frente ao conceito de planejamento sustentável que advoga a necessidade de recuperação das estruturas arquitetônicas e urbanas já existentes (DEL RIO, 2001). Nas últimas décadas assistimos a implementações de políticas públicas voltadas à dinamização dessas áreas, objetivando resgatar o que talvez mais caracterize a urbanidade dessas áreas: a co-presença de populações diversas, o fluxo de movimento humano e locus de comunicação, socialização e lazer.

No Brasil, essas políticas geralmente apresentam características normativas, mais preocupadas com a regulamentação de futuras e eventuais intervenções do que em fundamentar um plano de ações que vise soluções de problemas atuais. Assim, na maioria dos casos, temos como produto dessas políticas públicas um urbanismo mais preocupado com a cidade indesejada – para poder evita-la através de uma legislação rigorosa- do que, propriamente, com a cidade que realmente queremos.

O Projeto Porto Novo pretende mudar esse paradigma, abdicando do urbanismo tradicional de antecipação e previsão por um urbanismo propositivo. Um urbanismo que ouse propor uma cidade desejada onde a área de intervenção seja desenhada e estruturada a partir de seus espaços públicos. O projeto é uma resposta concreta de (re) qualificação urbana visando não apenas reverter a situação de degradação e abandono do centro do Recife, como também criar novas oportunidades de desenvolvimento para a área.

Entende-se também que os hábitos tradicionais de macro-planejamento, voltados para a escala regional e muitas vezes guiados mais pelos índices econômicos que por dados da realidade construída da cidade padecem de imprecisão. Permitem que as cidades sejam materializadas da maneira mais lucrativa somente para os investidores privados, sem garantia de impactos positivos para a população.

O planejamento baseado em projetos urbanos procura, por outro lado, garantir qualidades essenciais para a boa vivência urbana. Para tanto, entende que a partir do projeto específico de pontos estratégicos da cidade, realizado através do desenho urbano e da modelagem financeira detalhada, que se viabiliza uma cadeia de intervenções integradas e sustentáveis.

Não menos importante é a experiência sobre a capacidade de conciliar e articular investimentos públicos e privados na construção dos espaços urbanos de qualidade. Grandes projetos de interesse econômico para o Estado não necessariamente tem impacto positivo no desenvolvimento das cidades e da região em que se situam. Ao contrário, o que se observa é a multiplicação de efeitos negativos provocados pelas novas demandas. Demandas estas que geralmente não são atendidas pelo poder público.

Trata-se portanto de uma nova etapa de aprendizado – tanto na tentativa de levar a práxis urbana os conhecimentos adquiridos sobre a qualidade de vida no espaço público, como da chance de repensar as referências negativas e as críticas infundadas sobre as potencialidades das parceiras com os agentes dos investimentos privados.

Notas

[1] O edifício do Pescado Silveira foi concebido pela equipe do arquiteto modernista Luís Nunes, na década de 30 do século XX. Trata-se de um edifício que apresenta características típicas do modernismo brasileiro da primeira geração, com estrutura independente em concreto armado, o uso de panos de cobogós e lajes planas.

[2] Tipologia arquitetônica modernista muito utilizada na década de 1930s.

Referências

  • Brandão Neto, J. S. (2004), The role of urban design in strategic planning: the case of Rio de Janeiro. Thesis submitted for the degree of Doctor of Philosophy. Architectural Association School Of Architecture.

  • Brandão Neto, J. S. & Borba, C. (2009). “O Pragmatismo do Desenho Urbano com Memória: a operação urbana Cais do Porto”. In: O Moderno já Passado o Passado no Moderno: reciclagem, requalificação, rearquitetura, v. 6, p. 321-340.

  • Brandão Neto, J. S. (2012). Núcleo Técnico de Operações Urbanas: estudos 2007-2010. 1. ed. v. 1. 183p.

  • Castro, J. (1948) Fatores de Localização da Cidade do Recife. Um ensaio de geografia urbana. Recife: Impressa Nacional.

  • Del Rio, V. (2001) Voltando às origens. A revitalização de áreas portuárias nos centros urbanos. In: Arquitextos 015.06. Vitruvius, 2001.

  • Portas, N. (1998) Os impasses do planejamento urbano. Urbs, São Paulo.


Head image: Vista do Bairro do Recife, com destaque para a área portuária obsoleta.


Article reference for citation:
Brandão Neto José de Souza, Borba do Nasciment Cristiano Felipe, Canuto da Silva Robson, “Projeto Porto Novo: requalificação como estratégia de preservação da memória portuária da cidade do Recife”, PORTUS: the online magazine of RETE, n.28, October 2014, Year XIV, Venice, RETE Publisher, ISSN 2282-5789 URL: https://portusonline.org/projeto-porto-novo-requalificacao-como-estrategia-de-preservacao-da-memoria-portuaria-da-cidade-do-recife/

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