As reconfigurações territoriais no Arco Ribeirinho Sul do Estuário do Tejo: passado e presente

4 Luglio, 2017

As frentes ribeirinhas do Arco Ribeirinho Sul (ARS) do Estuário do Tejo (que compreendem as áreas de interface terra-água dos municípios de Almada, Seixal, Barreiro, Moita, Montijo e Alcochete, confinantes com a área de jurisdição do Porto de Lisboa) conheceram, ao longo do último século, importantes transformações funcionais. Transformações que são indissociáveis de um conjunto de fatores germinados a diferentes escalas territoriais (internacional, nacional/regional e local), verificando-se que a maior ou menor preponderância destes fatores (em que se inclui, naturalmente, a proximidade ao Porto de Lisboa) sobre as dinâmicas das frentes ribeirinhas é variável no tempo e no espaço. Partindo desta premissa, o artigo começa por (i) analisar os diferentes ciclos de ocupação das frentes ribeirinhas do ARS, para seguidamente (ii) interpretar as especificidades do processo de revitalização destes territórios no período pós-industrial e, num terceiro momento, (iii) discutir os principais desafios que estes territórios enfrentam, conferindo-se particular atenção aos três grandes brownfields aqui existentes.

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Municípios do Arco Ribeirinho Sul do Estuário do Tejo. (Fonte: Própria)

As metamorfoses funcionais das frentes ribeirinhas

Recuando até ao final da primeira metade do século XX, constata-se a presença neste território de um conjunto diversificado de funções e atividades económicas. Uma polifuncionalidade resultante de uma gradual acumulação de funções, donde se evidenciavam as funções litorais (i.e. aquelas que exploram os recursos e fatores de localização específicos providenciados pelos espaços litorais), nomeadamente as atividades extrativas (salicultura e pesca) e as atividades aquícolas (com destaque para a ostreicultura). De relevar ainda as atividades agrícolas, assim como as atividades comerciais (i.e. comércio marítimo-fluvial, em que o transporte fluvial de mercadorias e as infraestruturas de suporte – cais e pequenos portos – detinham particular expressão e relevância).

Paralelamente ao desenvolvimento destas funções e atividades, progrediram – e coexistiram – na paisagem ribeirinha várias atividades industriais, primeiro de cariz arcaico e, depois, moderno. Note-se que a evolução das atividades industriais foi fortemente influenciada (i) pela natureza das fontes de energia utilizadas, mas também (ii) pelos avanços tecnológicos e (iii) pelos estímulos formulados pela procura por parte do grande mercado da capital a que se juntou, em momento posterior, a procura proveniente dos mercados externos (incluindo-se aqui os territórios ultramarinos). Neste contexto, o Porto de Lisboa assumiu o relevante papel de plataforma de escoamento das produções industriais regionais, formulando a acessibilidade conferida por esta infraestrutura portuária um importante fator de localização industrial. Acresce que, com base na influência do binómio fontes de energia/materiais utilizados pela indústria, é possível identificar três grandes fases de desenvolvimento industrial neste território, sucessivamente impulsionadas pela utilização de: (i) fontes naturais de energia (e.g. energia das marés, biomassa florestal para combustão)/madeira, correspondente ao ciclo de industrialização arcaica; (ii) carvão/ferro, correspondente ao primeiro ciclo de industrialização moderna; e, (iii) eletricidade/novas ligas, que materializa o segundo ciclo de industrialização moderna.

Com efeito, é de notar que até ao início da segunda metade do século XX prevaleciam ainda, nas frentes ribeirinhas do ARS, algumas atividades herdadas do ciclo de industrialização arcaica, já em acentuado declínio e com uma expressão diminuta face àquela que tinham alcançado em momento anterior (e.g. construção e reparação naval tradicional). Outras, estando já praticamente desaparecidas, deixaram impressas no território ribeirinho as marcas da sua ocupação (e.g. indústria moageira, com recurso aproveitamento da energia das marés para moagem de cereais através de moinhos de maré).

Em relação às indústrias do primeiro ciclo regional de industrialização moderna, foram de vários ramos as que começaram a despontar no Estuário do Tejo desde os finais do século XIX (como é o caso da indústria conserveira e da construção/reparação naval em ferro/aço). Foi, todavia, a indústria corticeira aquela que veio a alcançar maior expressão, tendo esta marcado o primeiro grande ciclo regional de industrialização moderna.

Entretanto, um segundo ciclo regional de industrialização moderna havia começado a despontar na década de 1940. É precisamente neste contexto que ocorreram os três mais importantes investimentos industriais realizados no ARS: os complexos industriais da CUF (indústria química) no Barreiro, a Siderurgia Nacional (indústria siderúrgica) no Seixal, e os Estaleiros Navais da Lisnave (construção e reparação naval) em Almada. Complexos industriais que, fazendo do ARS o seu território privilegiado de implantação, apresentaram algumas especificidades nas suas lógicas de localização comparativamente com as atividades do primeiro ciclo regional de industrialização moderna: espaço disponível com orografia favorável; afastamento em relação às grandes concentrações urbanas – no caso, à cidade de Lisboa (minimizando assim os efeitos inerentes aos riscos tecnológicos e ambientais que lhes estavam subjacentes); francas acessibilidades marítimas e fluviais, facilitando a receção de matérias-primas utilizadas nos processos produtivos e a expedição dos produtos transformados.

As frentes ribeirinhas no período pós-industrial

A incidência territorial diferenciada dos vários ciclos de ocupação das frentes ribeirinhas do ARS determinou a gradual composição deste território como um mosaico complexo de espaços, cuja diversidade foi, como se viu, formada a partir da sucessão e acumulação de funções e de atividades. Um mosaico que constituiu o substrato sobre o qual teve lugar o processo de revitalização pós-industrial, despoletado na década de 1980, na sequência do declínio generalizado das atividades industriais que pontuavam este território.

Este processo envolveu, de um modo geral, três grandes tipos de intervenções (diferenciáveis em função da sua natureza, âmbito espacial e objetivos), indissociáveis da incidência territorial diferenciada dos anteriores ciclos de ocupação: (i) intervenções de requalificação das frentes ribeirinhas dos núcleos urbanos; (ii) intervenções de revalorização ambiental dos espaços naturais e naturalizados das frentes ribeirinhas; (iii) intervenções de regeneração dos espaços industriais ribeirinhos abandonados ou em declínio.

Em relação às intervenções de requalificação das frentes ribeirinhas dos núcleos urbanos, estas ocorreram na sequência do processo de gradual obsolescência funcional destas frentes de água. Um processo de declínio que se verificou, de um modo geral, a partir da segunda metade do século XX e que atuou no sentido da perda de vitalidade económica destes territórios e, bem assim, da sua progressiva desqualificação. As especificidades territoriais das frentes ribeirinhas dos núcleos urbanos do ARS, ou com estes confinantes, foi assim determinante da natureza das opções de intervenção, focadas na sua requalificação e, bem assim, na procura de soluções potenciadoras da melhoria da articulação urbanística e funcional destes territórios com o plano de água e tecido urbano adjacente. Desta forma, procurou-se criar condições para a sua fruição (vocacionada predominantemente para o recreio e lazer) e afirmação como espaços diferenciados, capazes de se constituir como novas centralidades qualificadoras do tecido e vida urbana, tirando partido da presença do elemento “água” e do enquadramento proporcionado pelo plano de água estuarino. Isto através da valorização do espaço público, da valorização do património construído e da melhoria da qualidade do ambiente urbano. O Passeio Ribeirinho Arrentela-Seixal (2005), o Passeio Ribeirinho Augusto Cabrita – Barreiro (2009), a Requalificação da Frente Ribeirinha da Vila da Moita (2004), a Requalificação da Frente Ribeirinha da Cidade do Montijo (2007) e a Requalificação da Frente Ribeirinha de Alcochete (2014), constituem exemplos deste tipo de intervenções.

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Requalificação da Frente Ribeirinha da Vila da Moita. (Fonte: Própria)

Quanto às intervenções de revalorização ambiental dos espaços naturais e naturalizados das frentes ribeirinhas, estas incidiram em operações focadas na revalorização ambiental de espaços naturais e naturalizados. As áreas que não sofreram alterações significativas decorrentes de processos antropogénicos, preservando por isso as suas características naturais, assim como as áreas ocupadas por atividades tradicionais que ocorreram no ARS durante o período de desenvolvimento das funções litorais e ciclo de industrialização arcaica (e.g. as áreas ocupadas por estruturas de antigas marinhas, atividades agrícolas e caldeiras de moinhos de maré), constituíram-se com o suporte privilegiado para prossecução deste tipo de intervenções. Mais recentemente, estas propostas de intervenção em frentes ribeirinhas têm vindo ainda a contemplar a recuperação ecológica de espaços de transição (e.g. espaços industriais-espaços naturais, espaços urbanos-espaços naturais) e de antigos espaços industriais degradados (mormente do primeiro ciclo regional de industrialização moderna). As intervenções projetadas neste domínio incluem, de um modo geral, (i) a melhoria das condições ecológicas destes espaços, (ii) a sua dotação com estruturas e equipamentos que propiciam uma utilização sustentável por parte da comunidade, e (iii) a criação de condições de suporte ao desenvolvimento de atividades económicas compatíveis com a sua conservação. A intervenção de consolidação das margens no âmbito da Operação de Valorização Integrada da Zona Ribeirinha da Moita à Praia do Rosário (Moita), a constituição do Polo de Animação Ambiental do Sítio das Hortas (Alcochete) ou a Qualificação dos Acessos e Instalação de Equipamentos de Apoio à Prática Desportiva em Alburrica (Barreiro), constituem exemplos deste tipo de intervenções.

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Passadiço sobre o plano de água que assegura a ligação à zona de Alburrica, Barreiro. (Fonte: Própria)

Finalmente, as intervenções de regeneração dos espaços industriais ribeirinhos abandonados ou em declínio têm vindo a ser preconizadas para as áreas correspondentes aos três grandes brownfields existentes no ARS, grosso modo, desde o exórdio do século XXI. Isto sem que tenha sido ainda possível despoletar a efetiva regeneração urbana destes territórios.

A situação atual dos antigos complexos industriais

São vários os fatores que têm vindo a concorrer para esta dificuldade em reconverter e revitalizar estes antigos complexos industriais. Entre estes fatores contam-se: (i) a extensão destes territórios (cerca de 55 ha no caso dos antigos Estaleiros Navais da Lisnave, de 536 ha no caso da ex-Siderurgia Nacional e de 290 ha no caso da antiga CUF/Quimiparque); (ii) a sua localização relativamente periférica; (iii) a existência de passivos ambientais a resolver; (iv) a suspensão (na sequência da crise económico-financeira de 2008) de alguns projetos estruturantes para a Área Metropolitana de Lisboa. Tais projetos tenderiam a criar condições favoráveis à regeneração destes territórios (e.g. a construção da Terceira Travessia do Tejo entre Chelas/Lisboa e o Barreiro, a construção do Novo Aeroporto Internacional de Lisboa no Campo de Tiro de Alcochete), incluindo a melhoria substancial das acessibilidades a diferentes escalas, pelo que concorrendo para o reforço da atratividade destes territórios e para o seu reposicionamento no contexto metropolitano.

Do ponto de vista do modelo de gestão, estes terrenos passaram, entretanto, a ser geridos pela empresa pública Baía do Tejo, que sucedeu à Sociedade Arco Ribeirinho Sul (extinta no início de 2012) na coordenação do processo de requalificação destas áreas, sob a égide do Projeto Arco Ribeirinho Sul. Tendo em vista o reforço do seu posicionamento global e da sua atratividade para captar investimentos, foi adotada em 2015 a designação Lisbon South Bay para estes territórios, com base na qual a Baía do Tejo tem vindo a trabalhar na sua promoção internacional.

No contexto atual, a situação destes antigos complexos industriais é, porém, diferenciada. No caso da Margueira (antigos Estaleiros Navais da Lisnave) foi aprovado, em 2009, o Plano de Urbanização de Almada Nascente. Um instrumento de planeamento territorial cuja visão estratégica se centra na valorização da presença do elemento “água” e na promoção de um modelo de ocupação multifuncional – “Cidade da Água” -, assumindo como princípios para a regeneração deste território, a sua constituição como: um lugar para trabalhar; um lugar de relação com a água; um lugar para habitar; um lugar de cultura; um lugar de conhecimento. Na perspetiva da concretização do projeto, têm vindo a ser noticiada a existência de vários investidores internacionais interessados no mesmo.

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Vista parcial da área dos antigos Estaleiros Navais da Lisnave. (Fonte: Própria)

Quanto à área da ex-Siderurgia Nacional, chegou a ser desencadeada a elaboração de um Plano de Pormenor que previa a instalação de usos habitacionais, comércio, serviços, equipamentos e lazer na zona norte deste território, no quadro de uma estrutura de zonamento que previa ainda usos industriais na zona central e indústria ligeira na zona sul. Este plano acabou por não ser concretizado, pelo que não se tornando eficaz. Entretanto, a revisão do Plano Diretor Municipal do Seixal (2015) veio afirmar uma vocação eminentemente industrial para a área da ex-Siderurgia Nacional, considerando-a como um espaço de atividades económicas onde predominam usos correspondentes a indústria transformadora pesada e a indústria e logística. Por outro lado, importa salientar que a Baía do Tejo, com o apoio de fundos comunitários, tem vindo a promover algumas intervenções destinadas a resolver passivos ambientais existentes neste território.

Em relação à área da antiga CUF/Quimiparque, foi encetada, ainda no decorrer da segunda metade da década passada, a elaboração do Plano de Urbanização do Território da Quimiparque e Área Envolvente. Todavia, este instrumento não foi ainda aprovado. Um facto para o qual terão contribuído vários aspetos, entre os quais a suspensão de alguns dos investimentos estruturantes supra enunciados, com destaque para a Terceira Travessia do Tejo. Acresce que, na sequência do abandono da hipótese de construção do Novo Terminal de Contentores do Porto de Lisboa na Trafaria (Almada), os terrenos da antiga CUF/Quimiparque têm vindo a ser apontados como a solução mais sólida para a construção deste novo terminal portuário. De acordo com o “Plano Estratégico de Transportes e Infraestruturas – Horizonte 2014-2020”, apresentado pelo Ministério da Economia em 2014, prevê-se que o novo terminal venha a ocupar uma área de cerca de 99 ha. Com efeito, caso este projeto seja concretizado, é expetável um reforço da componente industrial e logística no que concerne às vocações deste território, isto em detrimento dos usos habitacionais e de atividades de comércio e serviços. A Baía do Tejo tem vindo ainda a concretizar algumas intervenções neste território, destacando-se a intervenção em curso na Rua da União, cuja requalificação deverá traduzir-se na melhoria da articulação entre a área do parque industrial e o tecido urbano consolidado da cidade do Barreiro.

Em síntese, depreende-se desta análise que prevalecem ainda algumas incertezas sobre os processos de regeneração dos antigos complexos industriais do ARS, indissociáveis da própria incerteza quanto à concretização de alguns investimentos em infraestruturas estruturantes (mormente a Terceira Travessia do Tejo e o novo Terminal de Contentores do Porto de Lisboa) ou da capacidade de mobilização de investidores interessados na promoção destes projetos. Certo é que estão necessariamente em causa processos de muito longo prazo e cuja concretização terá que ser feita de forma gradual.

Agradecimentos

O artigo baseia-se nos resultados do Projeto de Doutoramento “Dinâmicas de Revitalização de Frentes Ribeirinhas no Período Pós-Industrial: o Arco Ribeirinho Sul do Estuário do Tejo” (financiado pela FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, SFRH/BD/38454/2007), complementados com os resultados dos trabalhos desenvolvidos no âmbito de uma Bolsa de Pós-Doutoramento financiada pela FCT (SFRH/BPD/110975/2015).


Head Image: Requalificação da Frente Ribeirinha da Vila da Moita. (Fonte: Própria)

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