A Relação Porto-Cidade no Brasil, em Tempos de Transição

10 Dicembre, 2016

O Brasil dispõe de 35 portos públicos, sendo 14 delegados, concedidos ou têm sua operação autorizada a governos estaduais e municipais; e 23 administrados diretamente por Companhias Docas, sociedades de economia mista, cujo acionista majoritário é o Governo Federal.

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Portos Públicos Brasileiros. (https://www.portosdobrasil.gov.br/assuntos-1/sistema-portuario-nacional).

Sistema Portuário Brasileiro – Marcos Regulatórios Recentes

Lei nº 8630/1993 [1] – A “Lei dos Portos”

Essa lei manteve o modelo “landlord port”, representou significativas mudanças em relação ao modelo anterior:

As Companhias Docas deixaram a condição de operadores portuários, para atuarem como autoridade e administração portuária. A operação portuária na área dos portos organizados passou a ser feita mediante arrendamentos, precedidos de processo licitatório.

A criação dos Conselhos de Autoridade Portuária (CAP), com caráter deliberativo, compostos por quatro blocos: governo (federal, estadual e municipais), operadores portuários, trabalhadores portuários e usuários de serviços portuários e afins (GONÇALVES, 2014).

Os CAP eram responsáveis inclusive pela aprovação dos Planos de Desenvolvimento e Zoneamento – PDZ dos portos.

Tais alterações resultaram em investimento privados que modernizaram as instalações portuárias, ampliando sua capacidade e produtividade.

Super safras, falta de silagem nas áreas produtoras e limitações de ferrovias e hidrovias sobrecarregaram o tráfego rodoviário até o limite da capacidade de rodovias, causando congestionamentos nos acessos a áreas portuárias e urbanas.

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Congestionamento no acesso ao Porto de Santos (2013).
(https://noticias.terra.com.br/brasil/transito/porto-de-santos-restricao-a-caminhoes-causa-congestionamento-de-50-km,894c27493f9ee310VgnVCM4000009bcceb0aRCRD.html)

Embora os portos públicos permanecessem propriedade do Governo Federal, mesmo os administrados diretamente por ele atuavam de forma regionalizada.

Esse novo cenário levou à criação, em 2007, da Secretaria Especial de Portos da Presidência da República SEP/PR [2], cujo organograma incluía um Departamento de Revitalização e Modernização Portuária, que passou a atuar no aprimoramento da relação porto-cidade.

Algumas cidades também se especializaram, como foi o caso de Santos que, em 2005, criou a Secretaria Municipal de Assuntos Portuários e Marítimos – SEPORT [3], a primeira do gênero no Brasil.

Lei nº 12815/2013 [4] – A “Nova Lei dos Portos”

A Medida Provisória nº 595/2012, depois Lei Federal nº 12815/2013, retirou o caráter deliberativo dos CAP e centralizou as definições e decisões relativas ao sistema portuário nacional em Brasília. As Autoridades Portuárias passaram a responder apenas pela administração dos portos e, em muitos casos, os PDZ de portos foram extra-oficialmente reformulados, sem consulta aos CAP.

A relação porto-cidade sofreu significativo retrocesso, inclusive quanto à interlocução pois, entre 2012 e 2016 a SEP/PR teve 6 (seis) ministros.

Conflitos em processo de discussão foram interrompidos, como foi o caso da operação de granéis sólidos na área conhecida como “Corredor de Exportação”, no Porto de Santos, lindeira a áreas residenciais.

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Porto de Santos – Operação de granéis sólidos no “Corredor de Exportação”.
(https://www.cetesb.sp.gov.br/2016/02/04/cetesb-multa-empresa-do-corredor-de-exportacao-de-graneis-no-porto-de-santo)

Bruttomesso (2015) afirma que: “[…] não há como evitar conflitos decorrentes das operações portuárias, mas é preciso estabelecer um diálogo constante para resolver as questões de forma harmônica” e complementa: “A atividade portuária não pode criar um problema para quem vive ali. É preciso buscar uma solução para conviver. A palavra é justamente essa: convivência entre a atividade portuária e a vida urbana”.

O mesmo autor considera que são três os passos fundamentais para alcançar esse objetivo:

  • Estabelecimento de diálogo, para mútuo conhecimento de necessidades e problemas;
  • Encontrar uma visão compartilhada, identificando os pontos comuns; e
  • Buscar soluções factíveis para os problemas identificados, com a participação de universidades e entidades ligadas ao setor.

Os Planos Mestres e os Planos de Desenvolvimento e Zoneamento Portuário

A Lei 12815/2013 prevê instrumentos de planejamento para o setor portuário nacional. Dois deles são: os Planos Mestres e os PDZ, elaborados para cada porto, com base no Plano Nacional de Logística Portuára – PNLP [5].

O Plano Mestre tem por objetivo direcionar as ações, melhorias e investimentos de curto, médio e longo prazo no porto e em seus acessos, considerando o PNLP e também o Plano Nacional de Logística Integrada [6]. Já o PDZ, segundo Koike (2016), tem como diretrizes principais:

  • Atender às políticas e diretrizes nacionais do setor portuário;
  • Compatibilizar com as políticas de desenvolvimento urbano dos municípios onde se localiza o porto;
  • Planejar para horizonte de curto, médio e longo prazo;
  • Observar e cumprir legislação ambiental;
  • Considerar como premissas as projeções de demanda, cálculos de capacidade e o consequente Plano de Melhorias e Investimentos estabelecido no respectivo Plano Mestre; e
  • Adequar as áreas e instalações visando à eficiência das operações e dos acessos ao porto.

Esses planos devem ser harmonizados com as políticas de desenvolvimento urbano dos municípios, e planejamento implica antevisão. Portanto, o episódio do “Corredor de Exportação” já apontava uma disfunção nessa premissa.

Acórdão do Tribunal de Contas da União

Por esse e outros motivos, o TCU publicou o Acórdão nº 778/2016 do TCU, relativo a:

Auditoria Operacional com objetivo de avaliar se o processo de elaboração do Plano Mestre do Porto de Santos está em consonância com as boas práticas internacionais e de governança em políticas públicas e se existe coordenação entre o Plano Nacional de Logística Portuária e o Plano Nacional de Logística Integrada (Brasil, 2016).

Em resumo, o referido Acórdão apontou as seguintes deficiências na versão Preliminar do Plano Mestre do Porto de Santos 2015:

  • Baixo grau de participação da comunidade portuária, da sociedade e dos municípios;
  • Desconsideração da relação porto-cidade;
  • Ausência de coordenação com o Plano Nacional de Logística Integrada; e
  • Inexistência de mecanismos para assegurar a efetiva implantação do plano.

Os Ministros do TCU, recomendaram que o Governo Federal “[…] 9.3.1. inclua, no processo de elaboração e atualização dos planos mestres dos portos públicos, mecanismos que facilitem e incentivem a participação direta da comunidade local, não somente através do CAP; […]”.

 

O relatório de auditoria que fundamentou a deliberação constante do Acórdão do TCU concluiu pela:

[…] pela necessidade de alterar alguns aspectos do objeto da auditoria de forma a possibilitar que o produto do presente trabalho estivesse apto a proporcionar melhorias efetivas no processo de elaboração dos planos mestres dos portos públicos (Brasil, 2016).

Também constatou que “[…] a decisão política de centralizar a gestão e o planejamento do setor portuário na SEP/PR vem sendo criticada de forma sistemática por especialistas e atores atuantes no setor portuário e vai de encontro ao que ocorre nos principais portos mundiais”.

De fato, é voz corrente no setor que essa decisão representou um retrocesso, comparado com o modelo de gestão anterior e com os portos de: Southampton, Rotterdam, Los Angeles e Dublin, concluindo:

Identificou-se, nesse exame, que a forma de condução do processo de elaboração dos planos por parte dos portos internacionais coincidiu com as diretrizes de aumento da participação e da transparência expressas no Referencial de Governança (Brasil, 2016).

Os auditores relacionaram aspectos que contribuíram para a eficiência, competitividade, expansão e aprimoramento da relação porto-cidade nesses portos, a saber:

  • Autoridade Portuária local (Municípios – Estados ou Regiões);
  • Administração portuária local compartilhada entre o Poder Público e Iniciativa Privada (de forma efetiva);
  • Governança Corporativa (Conselho similar ao CAP – com participação de todos os segmentos envolvidos);
  • Modelo de Porto Autônomo (administrativo e financeiro);
  • Administração profissionalizada com Plano de Metas e avaliações periódicas;
  • Praticamente nenhuma mudança de direção em função de mudanças da Administração Pública; e
  • Livre concorrência entre os Portos de mesmo país.

Essas eram algumas das expectativas de mudanças no sistema portuário brasileiro que foram frustradas pela Lei 12815/2013.

Conclusão

A recomendação do TCU foi para que o Governo Federal:

[…] promova as alterações necessárias para que a relação Porto-Cidade seja considerada estratégica e tratada desde o início do planejamento dos complexos portuários, com a efetiva compatibilização do planejamento portuário com os planos de desenvolvimento urbano dos municípios, assim como crie mecanismos institucionais que permitam e facilitem a efetiva participação dos municípios no processo de elaboração dos planos mestres dos portos públicos (Brasil, 2016).

O Ministério dos Transportes, Portos e Aviação Civil, que em 2016 assimilou as funções da SEP/PR, acatou as recomendações do TCU, propondo um “novo ciclo de planejamento”, que inclui:

  • Ampliação do rol de entrevistados, tanto de agentes públicos, quanto privados;
  • Inclusão de todas as entidades representativas dos terminais portuários e retroportuários;
  • Inclusão de entidades sindicais de transportadores rodoviários;
  • Inclusão de concessionários rodoviários e ferroviário;
  • Inclusão do Ministério Público Federal de Santos;
  • Envolvimento dos comitês internos Codesp sobre meio ambiente e ações sociais;
  • Interação maior com Secretarias Municipais de urbanização, meio-ambiente, assuntos portuários e planejamento;
  • Elaboração de capítulo específico no Plano Mestre sobre Interação Porto-Cidade; e
  • Aprofundar análise de planos de desenvolvimento territorial e similares; etc.

No entanto, ainda Bruttomesso (2016) reconhece que este não é um processo rápido, porque demanda pesquisas e diálogos constantes: “A busca por soluções deve levar em conta os interesses da comunidade. É preciso analisar os temas econômico, ambiental e social. Isso funciona como um tripé”.

Convivência pressupõe equilíbrio, e essa também é premissa da sustentabilidade portuária, seguindo os conceitos de “Green Ports”.

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Sustentabilidade Portuária, segundo Bailey (2009).
(https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:ugERd4qgDLsJ:oas.org/cip/docs/ctc/proteccion_ambiental/convenciones/1conv_brasil09/presentaciones/23_sustaibanle_port_comm_kathbailey.ppt+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br)

A expectativa, agora, é que o processo evolutivo do sistema portuário brasileiro seja retomado, aprimorando a relação porto-cidade “para o bem de todos e felicidade geral da Nação”.

Notas

[1] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8630.htm

[2] https://www.portosdobrasil.gov.br/

[3] https://www.santos.sp.gov. br/?q=cidadeaberta/guia/894058-seport

[4] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/Lei/L12815.htm

[5] https://www.portosdobrasil.gov.br/assuntos-1/pnpl/plano-nacional-de-logistica-portuaria

[6] https://www.epl.gov.br/index.php/content/view/7075.html

 

 

Referências

Bailey, K. (2009), Sustainable Port Communities, 1st Hemispheric Convention on Port Environmental Protection, Foz do Iguaçu, Brasil.

Brasil (2012), Plano Nacional de Logística Integrada, Brasília, DF, Brasil.

Brasil (2014) Portaria nº 3, de 7 de janeiro de 2014 – Estabelece as diretrizes para a elaboração e revisão dos instrumentos de planejamento do setor portuário – Plano Nacional de Logística Portuária – PNLP e respectivos Planos Mestres, Planos de Desenvolvimento e Zoneamento – PDZ e Plano Geral de Outorgas – PGO, Diário Oficial da União, 8 de janeiro de 2014, p. 1-7, ISSN 1677-7042, Brasília, DF, Brasil.

Brasil (2016), Acordão nº 778, de 6 de abril de 2016 – Auditoria Operacional com objetivo de avaliar se o processo de elaboração do Plano Mestre do Porto de Santos está em consonância com as boas práticas internacionais e de governança em políticas públicas e se existe coordenação entre o Plano Nacional de Logística Portuária e o Plano Nacional de Logística Integrada, Brasília, DF, Brasil.

Bruttomesso, R. (2015), Compatibilizar interesses é o desafio da relação porto-cidade, A Tribuna, 06 dezembro, p. C-6, Santos, Brasil

Gonçalves, A. L. (2014). Portos do Brasil: Gestão, Meio Ambiente e Revitalização sob o novo marco regulatório, Portus 28, RETE, Venezia, Italy.

Koike, T. (2016), Porto de Santos – Proposta de atualização do Plano Mestre 2016. Secretaria de Portos,  Ministério dos Transportes, Portos e Aviação Civil, Santos, Brasil.


Head image:  Porto de Santos – Aspectos do Canal do Estuário e da proximidade entre áreas portuárias e urbanas. (https://www.jornalodiadeguarulhos.com.br/porto_snts.jpg)

Article reference for citation:
Gonçalves Adilson Luiz, “A Relação Porto-Cidade no Brasil, em Tempos de Transição” PORTUS: the online magazine of RETE, n.32, December 2016, Year XVI, Venice, RETE Publisher, ISSN 2282-5789, URL: https://portusonline.org/pt/a-relacao-porto-cidade-no-brasil-em-tempos-de-transicao/

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